No final do espetáculo São Paulo, no Teatro Unimed (não percam), Regina Braga dá um grito: Eu sou São Paulo. Parte da plateia fez eco: Eu sou São Paulo. Vivi 21 anos em Araraquara e 64 em São Paulo. Sou paulistano, ainda que seja araraquarense. Digo mais, há uma terceira cidade à qual pertenço, Berlim. A gente pertence aos lugares onde é ou foi feliz.
Em Araraquara, ainda sinto o cheiro de coqueiros do Jardim Público, a estação ferroviária, os olhos negros de Marilia Caldas, os verdes de Cleia Honaim, o sapato vermelho de dona Odete, o trem das 6h10 que ia para São Paulo, ou a chegada do trem azul às 19h nas vésperas de férias, feriados, carnaval, semana santa.
Não esqueço o relógio da torre da Lupo, marcando a hora do cinema, o fim do footing, a entrada do Ieba. Quando morrer, que minhas cinzas sejam jogadas daquela torre, se a Liliana permitir. O relógio está no final do meu romance Dentes ao Sol.
São Paulo me desmentiu quando, ao partir de minha cidade, disse: não sei o que fazer da vida, vou ser nada. Tudo que não queria era ser nada. Jornal, revistas, fazer cinema, arranhacéus, Yvonne Fellman, abertura da cabeça, vi Sartre, fui amigo de Cacilda Becker (hoje sou de Fernanda Montenegro), aprendi sobre a vida com Fernando de Barros, vivi a noite, vivi a periferia, adorava fazer reportagem sobre bairros, eu ia feliz, conheci a cidade de cabo a rabo. Entrevistei JK (aquele era um presidente), Giulietta Masina, Jane Russel, Janet Leigh, Jânio (um louco menos louco do que o atual louco), vi os joelhos de Nara Leão ao vivo, aqui conheci as duas mulheres com quem me casei (Marcia, é de Araraquara; entenda a vida). Vi Yashin, o Aranha Negra, jogar no Pacaembu e decidi: serei goleiro.
Não fui, não fui comediante de teatro-revista, cantor da Nacional, comandante da Varig, amigo do Mário Lago, era confidente de Jacqueline Arrrarrrauqarrra Myrna. Se elencássemos o que não fomos, daria uma lista que faria a volta na Terra várias vezes. Lembrar frustrações diverte. Mas desejei e sonhei, como sonho ainda hoje, o que me leva para a frente.
Berlim, fui feliz nos parques, nos lagos, nos bosques. Vi o Muro, die Mauer, andei ao longo dele, atravessei-o, comi salsicha com curry-wurst, vi Juliette Binoche em um festival, vi Fassbinder, David Bowie, escrevi dois livros. Quantos saberão o que é, ao lado de Vera Fischer, atravessar um parque deserto num fim de tarde em Berlim sob a chuva, ouvindo Grace Jones cantando I've Seen that Face Before, ou seja Libertango. Sou São Paulo e nada tenho a reclamar. Não sou nostálgico, adoro cada momento vivido e a viver, só me entristece demais aquele lá, sabem qual é.
Lembrar frustrações diverte. Mas desejei e sonhei, como sonho ainda hoje, o que me leva para a frente.