Há uma frase que tenho repetido como um mantra e que funciona em minha trajetória. A vida lança no espaço vários pontos que parecem desconexos e depois liga um a um. Numa noite de 1958, eu ainda me adaptava a São Paulo e uma jornalista do Última Hora, Yvonne Fellman, me convidou para ir ao TBC assistir à estreia de Pedreira das Almas, de Jorge Andrade.
O TBC era um mito, ligado à Vera Cruz, outro mito, ao lado do Nick Bar, terceiro mito para o provinciano deslumbrado. Ao terminar a peça, Yvonne, que cobria teatro, me levou ao camarim de Fernanda Montenegro, a atriz principal. Ela já era nome consagrado, junto a Cacilda Becker, Nydia Licia, Tônia Carrero. Eu nada disse, embasbacado. No dia seguinte contei a Zé Celso, que já tinha criado o Oficina, e ele quis saber como a Fernanda era, o que tinha dito, se era simpática, e eu disse: afetuosa. Foi a imagem que me ficou dela.
Fui aos arquivos e constatei com espanto que naquela noite eu tinha visto, no mesmo palco, além da Montenegro, Fernando Torres, Raul Cortez, Leo Villar, Francisco Cuoco, Nathalia Timberg, Dina Lisboa, Carminha Brandão, Ítalo Rossi, Oscar Felipe. A futura história do teatro no Brasil.
Fernanda foi a primeira grande atriz que conheci. Nem podia ter o mínimo vislumbre de que um dia eu estaria na Academia Brasileira de Letras, votando nela. Seríamos companheiros na maior instituição literária do Brasil.
Admirei a vida inteira esta mulher. Ela, há poucos anos, mostrou grandiosidade e generosidade para comigo, ao retirar sua candidatura à ABL, liberando a vaga, como se diz. Estivesse concorrendo, eu ficaria fora, esperaria talvez anos. Alegou que queria chegar aos 90 anos, terminar sua biografia e sua fotobiografia, volume de 500 páginas, nada mais, nada menos. Poucos têm carreira semelhante no teatro, no cinema e na televisão.
Uma conhecida me ligou: 'Por que Fernanda Montenegro está na ABL? Ela só escreveu um livro? Estranhíssimo'. Senti enorme ressentimento na voz. Expliquei que a Academia foi criada seguindo os parâmetros da francesa, ou seja, ela é de notáveis em seus campos. Poucos sabem disso.
E se alguém é notável, é Fernanda. Se vocês pegam o itinerário fotobiográfico de sua vida, são 5 centímetros de grossura. Obra preciosa. Nela estão toda sua vida, peças, filmes, novelas, o que fez em 90 anos. Espantosa carreira em um país como este nosso.
Esta sua eleição é um marco na arte brasileira. E está dentro de mim uma estranha sensação de prazer, de felicidade. De alegria. Ainda me lembro daquela noite em que fui ao TBC para assistir a Pedreira das Almas, 63 anos atrás.
Toca-me também o fato de a peça ter sido escrita por Jorge Andrade, futuro amigo, companheiro de trabalho na Abril e a pessoa que levou escondido para a Itália o original do meu romance Zero. Cercado pela censura, meu livro saiu primeiro na Europa para só depois ser publicado aqui.
Todas essas coisas se misturam em minha cabeça. Como aquele garoto de 22 anos, vindo de Araraquara, poderia imaginar tudo isso? Pena que não seja eu a entrevistá-la hoje para este jornal. Fernanda já é imortal há muito. A entrada na ABL apenas chancela sua notoriedade e o tanto que vem iluminando o Brasil.