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Bernardo Guimarães

                HINO À AURORA

E já no campo azul do firmamento
A noite extingue os círios palejantes,
E em silêncio arrastando a fímbria escura
    Do tenebroso manto
Transpõe do ocaso os montes derradeiros.
A terra, de entre as sombras ressurgindo
Do mole sono lânguida desperta
E qual noiva gentil, que o esposo aguarda,
    De galas se adereça.
Rósea filha do sol, eu te saúdo!
Formosa virgem de cabelos d'ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
    Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! - quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
    Qual cândida princesa
Que em desalinho lânguida se erguera
Do brando leito, em que sonhou venturas,
Tu lá no etéreo trono vaporoso
Entre cantos e aromas festejada,
Sorrindo escutas os melífluos quebros
Das mil canções com que saúda a terra
    O teu raiar sereno.
Também tu choras, pois em minha fronte
Sinto teu pranto, e o vejo em gotas límpidas
A cintilar na trêmula folhagem:
Assim no rosto da formosa virgem
- Efeito às vezes de amoroso enleio -
Brilha através das lágrimas o riso.
Bendiz o viajor extraviado
Tua luz benigna que a vereda aclara,
E mostra ao longe fumegando os tetos
De alvergue hospitaleiro.
Pobre colono alegre te saúda,
Por ver em torno do singelo colmo
Sorrir-se vicejante a natureza,
Manso rebanho retouçar contente,
Crescer a messe, as flores desbrocharem;
E unindo a voz aos cânticos da terra,
Aos céus envia sua humilde prece.
E o desditoso, que entre angustias vela
No inquieto leito sôfrego volvendo-se,
Espia ansioso o teu fulgor primeiro,
Que lhe derrama nas feridas d'alma
    Celeste refrigério.
A ave canora para ti reserva
De seu cantar as mais suaves notas:
E a flor, que expande o cálix orvalhado
As estremes primícias te consagra
    De seu brando perfume...
Vem, casta virgem, vem com teu sorriso,
Teus perfumes, teu hálito amoroso,
Esta cuidosa fronte bafejar-me;
Orvalho e fresquidão piedosa verte
Nos ardentes delírios de minh’alma,
E desvanece estas visões sombrias,
Funestos sonhos da penada noite !
Vem, ó formosa... Mas que é feito dela?...
O sol já mostra na brilhante esfera
O disco ardente e a linda moça etérea
Que inda há pouco entre flores reclinada
Sorria-se amorosa no horizonte,
Enquanto a saudava com meus hinos
- Imagem do prazer, que breve dura, -
    Se esvaeceu nos ares...
    Adeus, esquiva ninfa,
Fugitiva ilusão, aérea fada!
Adeus também, canções enamoradas,
Adeus, rosas de amor, adeus, sorrisos...

 

                                        O DESTINO DE ISAURA

Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena família, e em que ficaram os negócios da casa, depois que a notícia da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio das intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam forçosamente um desenlace qualquer.

Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna paterna, e desatando as últimas peias que ainda o tolhiam na expansão de seus abomináveis instintos.

Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.

         - Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.

Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe doloroso, com a notícia do falecimento de seu pai; mas no fundo d’alma, força é dizê-lo, passado o primeiro momento de abalo e consternação chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha livrá-lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar-se à dor que lhe deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das dificuldades, em que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se da posse da gentil cativa. As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis. Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também, e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada, exigia com império a imediata alforria da mesma. Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência, e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever; assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e exprobrações de Malvina.

Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:

         - Temos tempo, Malvina, - respondeu-lhe o marido com toda a calma. É-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.

Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez mortal; ela sentiu esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles dias de amarga meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da consciência, reconhecesse seus erros e desvarios, implorasse o perdão deles, e se propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas fúteis e evasivas do marido vieram submergi-la de chofre no mais amargo e profundo desalento.

         - Como?! - exclamou ela com um acento que exprimia a um tempo altiva indignação e o mais entranhado desgosto. Pois ainda hesitas em cumprir tão sagrado dever?... se tivesses alma, Leôncio, terias considerado Isaura como tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como a uma filha querida, e que era seu mais ardente desejo libertá-la por sua morte e deixar-lhe um legado considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai havia feito promessa solene ao pai de Isaura de dar-lhe alforria pela quantia de dez contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!... Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de um dever de que há muito tempo já devias ter-te desempenhado.

         - Mas para que semelhante pressa?... não me dirás, Malvina? - replicou Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. - De que proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? porventura não está ela aqui bem? é maltratada?... sofre alguma privação?... não continua a ser considerada antes como uma filha da família, do que como uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse mundo?... assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solícita se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não devemos por ora entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar-lhe uma posição decente, honesta e digna de sua beleza e educação, procurando-lhe um bom marido, e isso não se arranja assim de um dia para outro.

         - Que miserável desculpa, meu amigo!... Isaura por ora não precisa de marido para protegê-la; tem o pai, que é homem muito de bem, e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemo-la ao senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito boa sombra.

         - Pobre do senhor Miguel! replicou Leôncio com sorriso desdenhoso. Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios, de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, principalmente agora em que decerto empenhou os cabelos da cabeça para arranjar a alforria da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizeram, como me parece mais certo.

Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou. Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido, fingiu-se satisfeita e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não podia, porém, prolongar por mais tempo aquela situação para ela tão humilhante, tão cheia de ansiedade e desgosto, e no outro dia insistiu ainda com mais força sobre o mesmo objeto. Teve em resposta as mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar desse negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não pôde conter-se, e rompeu com seu marido. Este, como já friamente havia deliberado, aparou os raios da cólera feminina no escudo de uma imprudência cínica e galhofeira, o que levou ao último grau de exacerbação da cólera e o despeito de Malvina.

 No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que fosse, deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia de seu irmão Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge da indignação nunca mais pôr os pés naquela casa, onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seu desleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teria forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos, inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais depressa do que o amor; e o amor que Malvina consagrava a Leôncio, a despeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte do que seu ressentimento, por mais justo que este fosse.

Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos assomos da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços cruzados, e sem fazer a mínima observação, os preparativos daquela rápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seu charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o mais indiferente dos hóspedes.

Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e sincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de sua mulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização daquela caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campo inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandos projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco-caso, conseguia disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto que em circunstâncias menos graves, que contra as cóleras e caprichos femininos não há arma mais poderosa do que muito sangue-frio e pouco-caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquela afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a alma de seu marido.

O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?

Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do comendador, Isaura perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento antes Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu que um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava em sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se e preparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor mortal apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como que alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas, passava horas e horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre, que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de garras sangrentas. Quem poderia ampará-la? onde poderia encontrar proteção contra as tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoas poderiam ter por ela comiseração e interesse: seu pai e Malvina. Seu pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, e só podendo comunicar-se com ela a custo e furtivamente, em pouco ou nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosa em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas, começou a olhá-la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeito do ciúme, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidas e benevolentes. A senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada vez menos tratável e benigna para com a escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quase fraternal.

Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência de Isaura, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga. Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava em presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviam e transvazavam do coração.

         - Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa... - dizia-lhe a maliciosa rapariga. - Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos; há muito tempo que eu estou vendo essa impostora, que diante da sinhá se faz toda simplória, andar-se derretendo diante de sinhô moço. Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.

Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar o espírito de uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foram produzindo o resultado que desejava a perversa mulatinha.

Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas tentativas para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a afeição e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de poder manifestar sua inocência. Mas era recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar-se mais fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.

Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava Isaura contra as importunações e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse o respeito, que lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderoso estorvo ao menos contra os atos de violência, que quisesse pôr em prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo, e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento em que ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-a inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros caprichos daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.

De feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da última colina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou logo de pôr o tempo em proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi enfim dar com ela no escuro recanto de uma alcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em pranto e arrancando do peito soluços convulsivos.

Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu. Contentemo-nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos e suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do interesse e dever dela render-se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas promessas, e os mais solenes protestos; abaixou-se até as mais humildes súplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca não ouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações; e vendo enfim que eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se cheio de cólera, vomitando as mais tremendas ameaças.

Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia mandou pô-la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo antecedente. Dali teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco, do tronco para o pelourinho, e deste certamente para o túmulo, se teimasse em sua resistência às ordens de seu senhor.

                                                              (A escrava Isaura, capítulo 8)