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Predação como vocação

 

O que guarda um museu? A memória da obra de um grande artista ou de um grupo de artistas com a mesma origem ou tendência. A memória de um tempo ou de uma prática determinada, um museu será sempre um elogio à memória, o reconhecimento dessa qualidade humana, exposição indispensável a quem deseja saber quem é e de onde veio.

O que é uma Cinemateca? Um museu de filmes que nos digam de onde viemos e para onde podemos ir, um museu do olhar sobre nós mesmos. Por meio dos filmes, não só vemos o que nos aconteceu, mas também como as pessoas que nos puseram em película testemunharam nossa reação ao que nos aconteceu. Neste século e nos próximos, o cinema e os filmes de cinema são e serão uma respiração constante, a iluminar nosso pensamento sobre nós mesmos. Não saberemos viver sem eles.

Como escreveu o cineasta Roberto Gervitz, num artigo aqui mesmo, neste espaço, não podemos fazer da predação uma vocação. O fogo na Cinemateca não é apenas um descaso de quem não se interessa pela atividade; mas um gesto de quem não ama nada e ninguém, nem a si mesmo. Guardar, conservar e restaurar, para saber quem somos.

Enquanto a Cinemateca Brasileira pegava fogo em São Paulo, morria aos 74 anos de idade, em Maceió, o professor e crítico Elinaldo Barros. Elinaldo escrevia sobre cinema nos principais jornais alagoanos, o que fez durante toda a sua vida. Ele era responsável, ao lado I de Paulo Cesar dos Santos, por sessões alternativas de filmes clássicos e artísticos de importância cultural, exibidos em salas comerciais da cidade. Sua atividade formou umas duas gerações de cinéfilos, sendo que alguns vieram a se tomar cineastas e transformaram Maceió num centro nordestino de cultura e prática cinematográficas.

Como ele fazia, cinéfilos e especialistas regionais, sem apoio algum do governo federal, têm tentado produzir fértil encontro entre a juventude e a cultura cinematográfica, provocando o surgimento de uma nova geração de brasileiros ligados à atividade. Graças apenas ao esforço local privado e público.

Elinaldo Barros escreveu sobre temas que iam de Hitchcock ao cangaço. Em pesquisa sobre a primeira grande produção alagoana, publicada em seu livro 'Panorama do Cinema Alagoano', ele nos conta como Edson Chagas, realizador pernambucano do historicamente célebre 'Aitaré da Praia', uma joia do Ciclo do Recife, de 1930, deixa Pernambuco em novembro daquele ano e, atraído por Guilherme Rogato, desembarca em Maceió para fazer 'Um bravo do Nordeste', primeiro filme de ficção produzido no estado.

Quem primeiro ajudou a tocar o projeto de Guilherme Rogato foi o governador Pedro da Costa Rego, apoiado depois por pequena empresa local, a Alagoas Film, formada por jovens regionalistas de Maceió, como Aurélio Buarque de Holanda, Guedes de Miranda, Jaime de Altavilla, José Lins do Rego e Manoel Diégues Jr. (Meu pai era um homem silencioso que cultivava a modéstia e o pudor, nunca me havia contado esse pedaço de sua vida. Quando tomei conhecimento dele, através de Elinaldo, o doutor Diégues já havia falecido).

Enquanto alguns se alimentam de esperança, dando tudo pela construção de uma cultura brasileira no cinema, outros pouco se importam e assistem impávidos ao fogo que grassa na atividade. Mesmo que os incêndios se multipliquem, graças à inércia dos (irresponsáveis; mesmo que os políticos no poder decidam que não podemos ver nossos próprios rostos nas telas; mesmo que sejamos constrangidos a não filmar nosso jeito de viver e amar; mesmo assim, o amor ao cinema, semelhante ao de Elinaldo Barros, nos trará de volta a ele, seja em que forma e de que jeito for.

O Globo, 08/08/2021