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Lições de política no Brasil de Bolsonaro

 

País está aceitando a melancolia como fatalidade, com o argumento ignorante de que a Humanidade é assim mesmo

O Ministério Público está cobrando da Ancine a contratação dos projetos aprovados, há mais de dois anos, pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A agência tem 120 dias para resolver o problema que ela mesma criou colaborando, através da política de embaraço à produção, com o boicote do governo à cultura do país. Não sei se o presidente, no seu cantinho de hospital, vai tomar conhecimento dessa história. Mas, logo ou depois, vai certamente se aborrecer com o juiz que tenta, no que está a seu alcance, evitar que o Brasil caia numa Idade Média tardia, para onde Bolsonaro nos empurra com entusiasmo.

Jair Bolsonaro era um presidente recente. Embora nunca tivéssemos, nem de longe, pensado em votar nele, ainda não tínhamos descoberto, direitinho e por completo, seu caráter indecoroso e enganador. Ou o estávamos descobrindo, mas faltava completar o desenho de um caráter que iria se revelar de corpo inteiro, sobretudo na pandemia (um genocídio de quase 600 mil cidadãs e cidadãos). Não tínhamos tido um candidato que nos ajudasse a retomar um rumo que Dilma havia interrompido. Fernando Haddad parecia um cara correto, um bom sujeito capaz de fazer uma boa administração do país. Mas desprovido de sonhos e da audácia de que tanto precisávamos para recolocar o Brasil na trilha da poesia.

Desde a faculdade, na agitação do movimento estudantil, sabíamos que Brasília, por exemplo, era uma porra-louquice responsável pela inflação que maltratava a população. Mas não podíamos evitar um friozinho na barriga, um arrepio na nuca cada vez que via a imagem de um daqueles monumentos, belos edifícios e palácios modernos, gloriosamente esculpidos no deserto pelo maior artista plástico de todos os tempos, o criador sem freios Oscar Niemeyer.

Cada um de nós, mesmo que não o declarasse, desejava estar à altura daquela grandeza. O novo Brasil, mesmo que não gostássemos da política sócioeconômica vigente, fosse ela qual fosse, tinha que ser construído à semelhança do que tudo aquilo significava. Era aquele destemor, era aquela força de vontade, era aquela a louca mania que nos atraía para a aventura de mudar o mundo. Mudando-o certamente na direção de nosso próprio rumo. O Brasil estava condenado a propor à civilização humana um jeito de viver que nada tinha a ver com a medíocre dualidade da Guerra Fria. A nossa revolução vinha ao mundo com um sorriso de tudo; e muita certeza e confiança visíveis no coração.

Era esse o nosso instrumento de criação. Na arquitetura, como na poesia, na música, na literatura, na pintura, no teatro, no cinema que começávamos a inventar. Na política e nas nossas lições práticas de política, estávamos reproduzindo, em outro espaço, um momento especial na história do país — na passagem do século XVII para o XVIII, uma geração colonial delirante, sem lideranças evidentes, garantia, com sua coragem e sua imaginação, grande parte da vastidão de nossos 8,5 milhões de km², até hoje uma raridade no mundo.

Por falta de ousadia e confiança na democracia, o Brasil está hoje deixando corromper-se a teia de valores que o diferenciava de tantos povos melancólicos pelo mundo afora. Está aceitando a melancolia como fatalidade, com o argumento ignorante de que a Humanidade é assim mesmo. Prefiro voltar a ser como quando a gente preferia agir em vez de assistir (em geral, com muita lamentação). Mesmo que às vezes não nos entendessem, não tínhamos vergonha de não nos sentirmos obrigados a ser o que queriam que fôssemos. É contra essa rendição que temos que nos bater, fazer política diante da Ancine e do que for.

O Globo, 18/07/2021