No final dos anos 1950, em Araraquara, Mister Pimenta, professor de inglês, teve um gesto generoso. Toda terça-feira à noite, ele dava uma aula gratuita de reforço de inglês. Classe lotada. Por semanas, lá estive, por interesse na língua e em uma loirinha, a Gilda. O ritual da paquera, na época chamado flerte, era longo, exigia paciência. Em geral, começava no footing, com as mulheres caminhando na calçada entre os dois cinemas e os homens parados no meio-fio. Olha que olha, olha que olha, até que o olhar era correspondido. O footing acontecia aos sábados e domingos. Primeira semana, segunda, terceira, um encontro era marcado e aí dependia de você. As aulas de terça-feira acabavam funcionando como um dia a mais para nos favorecer. Uma noite, consegui descer a escada ao lado de Gilda. Emocionado, sabia que aquela era a chance. Conversamos um pouco, elas tinham horário para regressar à casa, 10 da noite. A certa altura, consegui encaixar a frase, “gostaria de namorar contigo, parece que a gente vem se entendendo”. Ela pareceu constrangida: “Tem um problema, meu pai acha que é cedo para eu ter namorado. Também acho. Além disso, meu irmão disse que só vou namorar quem ele aprovar. Não me leve a mal”. Insisti – só eu sei o quanto me custou – e ela ficou firme: “Não”.
Na quinta-feira, fui ao cinema, já tinha começado a fazer crítica no jornal. Sentei-me atrás de três amigas de Gilda. Elas conversavam e então uma delas chamada Elide disse uma coisa tenebrosa. Nunca mais esqueci esse nome, Elide. Ela se virou para as amigas: “Sabem que o Ignácio quis namorar a Gilda? E ela disse ‘não, você é muito feio’. Disse na cara dele. E ela tem razão: quem vai namorá-lo?”. Não ouvi mais nada. Ser feio era estigma. Tempos difíceis, moralismo, severidade, pegava-se na mão depois de dois meses de namoro. Aliás, para terem ideia de como este país era, na década de 1970, quando fui à Primeira Feira Literária de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, fiquei surpreso com o número de garotas que circulavam à noite. Um sucesso. Os livros eram atraentes? “Não”, me disse uma delas, “é que, com a Feira, nossos pais e irmãos nos deixam sair durante a semana”.
Por que há de se lembrar? O assunto nada significava para ela. Doce e instigante mistério. Fui mais longe: e se ela estiver aqui neste auditório, viva, ou em casa me assistindo digamos, ao lado da filha? E esta se vira para a mãe e pergunta: “Veja só! Quem terá sido essa mulher que o rejeitou? E se tivesse sido você, mãe? Teria dito sim? Tivesse dito, ele hoje seria meu pai?”. Fascinantes estes rápidos recortes da vida jamais desvendados. Literatura funciona assim. Ou imaginei este ‘não’ e o incluí como realidade? A memória tem sua ironia, uma certa dose de crueldade, diz meu primo José Castelli, filósofo certeiro em tardes invernais.