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Tente sempre ser feliz

 

Na minha juventude de movimento estudantil, Daniel Ortega era um jovem revolucionário da Nicarágua, país caribenho vítima da longa e cruel ditadura entreguista de Anastasio Somoza. Membro da Frente Sandinista de Libertação Nacional, Ortega era um de nossos heróis, guerreiros que lutavam pela libertação da América Latina. Como o mito histórico Augusto Cesar Sandino, morto nos anos 1930, na luta contra a ocupação americana da Nicarágua. Ou como Fidel Castro, cuja vitória da revolução cubana se dera no final da década de 50, num dia de Ano Novo que comemoramos nas ruas, triunfante Reveillon anti-colonial. Hoje, Daniel Ortega é o chefe de um governo de violência e crimes, que elimina seus adversários políticos ou impede que se manifestem, seja de que natureza for a oposição. Dos herdeiros de Violeta Chamorro, sua parceira contra Somoza, a combatentes sandinistas de esquerda.

Se nossos heróis do passado revolucionário fazem desse jeito,

de que jeito vamos nós fazermos para permanecermos fiéis a nossas ideias?

Talvez só a união, até mesmo dos contrários,

garanta a sobrevivência de nossas ideias.

O mundo foi tomado por uma onda fascista que nem sei,

eles se empenham em encerrar a liberdade, como um mel que adocica bocas,

num pote de abelhas carnívoras.

Vamos fazer como fez Israel, se unindo contra um poder de 12 anos,

exercido por falcatruas, sem consultas e com chicote nas mãos,

nem que para isso misturemos par e ímpar

na mesma mão.

Vamos tentar acreditar na doçura retroativa de Joe Biden,

na confiança que nos dá sua vice linda, cheia de pureza esperta,

na possibilidade, mesmo que longínqua, de ele estar dizendo

a verdade e que a verdade

hoje seja uma metafísica distinta dos axiomas literários

que sempre defendemos,

acima de tudo se escritos do cárcere ou na certeza do raciocínio dialético.

O único que reconhecemos, porque lemos muito sobre tudo

e é sobretudo o que mais se parece com o jeito humano original de pensar,

sei lá desde quando,

li isso em algum lugar de respeito.

Quero agora que meu país se pareça com um equilibrado e reto Canadá

ou com a Nova Zelandia, onde não morreu quase ninguém de Covid 19,

porque eles tomaram providências desde cedo,

quando ainda não havia morrido ninguém. Ou quase ninguém, não sei.

Estamos sozinhos no mundo,

nem velhos esquerdistas se defendem mais e,

se defendem,

escondem das multidões, ninguém quer virar gargalhada do resto.

Fecho os livros e a sabedoria deles arranco por enquanto da lembrança.

Vamos chamar os centristas e mesmo uma certa, fina e culta direita

para defendermos com todos o direito de sermos livres

e pensarmos do jeito que melhor acharmos por bem,

como se nossas vozes fossem uma só, mesmo que tão dissonantes,

porque o mundo será sempre um só, se livre.

Quando não tem mais saída, é preciso tentar sempre do que temos e está aí, para não sermos obrigados a fracassar sempre, por nada. “Tente”, me dizia sempre Lucy Barreto, minha querida, rigorosa e imaginosa produtora de “Bye Bye Brasil”, única a quem devo esse filme, que me fazia experimentar dentro do que havia a nosso alcance.

O Globo, 20/06/2021