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E a vida segue em frente

 

Datas são sempre difíceis de suportar. Quando elas recordam momentos fúnebres de nossas vidas, cenas tristes que se passaram coletivamente ou apenas conosco, se tornam então inaceitáveis. Sempre reagi ao esforço que minha mãe fazia para que celebrássemos o Dia de Finados, lembrando nossos mortos queridos, nossa avó paterna, minha tia e madrinha, nosso avô materno. Os mortos do momento. Como era feriado, eu saía cedo de casa e procurava me ocupar com alguma coisa que tomasse todo o dia.

Semana passada, mais exatamente no dia 2 de junho, a morte de minha filha Flora completou dois anos. Durante dias, não consegui pensar em outra coisa. Procurava evitar a demagogia, a ideia aristocrática de que o evento trágico só tinha acontecido comigo, que eu era o único ser humano a ter motivo para chorar neste planeta cruel, com uma população desinteressada em minha dor. Vítima de um súbito tumor no cérebro, a curta existência dela tinha sido só um ensaio do que poderia ter sido sua vida, provavelmente e por merecimento mais que centenária.

Acabei escrevendo um texto melancólico, uma sucessão de ideias pouco estimulantes que provocou reações de piedade e compaixão, expressas em generosas mensagens de leitores preocupados. Não, não vou me entregar à impotência diante do mundo porque minha filha foi embora, não vou decretar meu próprio fim por causa do fim dela. Aliás, amigo querido de Flora nos contou que, em sonho, a encontrava num shopping da cidade, a se divertir. Depois de muita conversa, ele se dava conta de que ela não devia estar ali e lhe perguntava se não havia morrido. “Eu não morri”, respondia-lhe Flora, com aquele humor de sempre, “na verdade, fugi”.

Sei que daqui a pouco, dependendo de circunstâncias concretas, do que a Ancine vai fazer da gente, da grana levantada por um produtor de confiança, de meu amor por um bom projeto, vou estar novamente fazendo filmes, trabalhando com o audiovisual que sempre amei tanto, por toda a minha vida. Pode ser um filme no formato tradicional; como pode ser uma série moderna para a televisão. Pode ser uma ficção experimental, disfarçada em melodrama familiar; ou um relatório das misérias do Brasil, provocadas por Bolsonaro. Sons e imagens que contem um conto que valha a pena, que precisa ser contado; alguma coisa no fluxo de uma história coletiva, com a marca indispensável de uma singularidade.

Um dos projetos que desenvolvo no momento, a convite do produtor de “Bye Bye Brasil”, meu velho e querido amigo Luís Carlos Barreto, é uma história do cinema brasileiro, série para a televisão em seis episódios, que escrevo em parceria com Rodrigo Fonseca. Como não queremos adotar o procedimento garantido mas preguiçoso de fazer entrevistas seguidas de trechos da obra do entrevistado, chamamos a série de “Estórias do cinema brasileiro”. O uso de “estória” com “e”, inventado pelos modernistas de São Paulo (que já me disseram que não se usa mais, que foi até eliminado de nosso vocabulário oficial), nos permite criar, em alguns momentos, cenas de ficção por cuja veracidade não nos responsabilizamos.

Me permito encerrar esse texto com uma autocitação do epílogo de nosso projeto, como segue. “O cinema brasileiro pode viver crises, algumas até bem agudas. Mas nada e ninguém conseguirá acabar com ele. Somos um espelho da diversidade do povo e do país, dispostos a nos transformar, sempre que isso for necessário. Seremos sempre fiéis ao povo e ao país, mudando com eles no rumo mais conveniente. Ou simplesmente mudando com eles, quando eles mudarem. Não tem outro jeito.” Esse é o mais sincero modo de viver a vida amando de verdade, não tem outro jeito.

 

 

O Globo, 13/06/2021