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O paradoxo da esquerda

 

A esquerda brasileira está diante de um paradoxo que pode derrota-la ao promover passeatas como as de ontem, por todo o país, contra o governo Bolsonaro. Estou convencido de que se não tivéssemos a pandemia, as manifestações de rua já teriam criado um clima político favorável ao impeachment do presidente. Não é preciso levar em conta a ação do governo na pandemia para impedi-lo de continuar na presidência da República.

Antes disso, já havia cometido barbaridades, como as manifestações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. A partir da divulgação daquele vídeo com o “golden shower”, logo no início de seu governo, Bolsonaro deu motivos suficientes para ser impedido de estar na presidência da República.  

Mas promover manifestações de rua neste ambiente de pandemia, ainda mais agora, com uma terceira onda de COVID-19 às portas, parece tão insensato quanto o desfile de motocicletas patrocinado por Bolsonaro, ou as aglomerações que ele promove a cada aparição pública.

É um paradoxo mortal termos uma CPI no Senado tentando fazer conexões entre o comportamento de Bolsonaro durante a pandemia com uma política premeditada de alcançar a imunidade de rebanho, e ao mesmo tempo se comportar como ele e seus seguidores, dando margem a que manifestações como essas sejam normalizadas.

Da mesma maneira, seria dispensável o empenho escancarado do relator da CPI, senador Renan Calheiros em incriminar o presidente se ele conseguisse fazer perguntas tão objetivas quanto as respostas que exige dos inquiridos. Chega a ser impertinente a maneira como ele interrompe os depoentes, impedindo que terminem sua argumentação.

Uma coisa é se empenhar em não deixar que as testemunhas tentem ganhar tempo sem explicar direito como as coisas se passaram. Outra é cortar pelo meio as respostas, ficando apenas com as partes que interessam ao seu modo de ver as coisas. Acho que ele está no caminho certo, mas se atrapalha com as próprias pernas no caminhar. As incoerências ficam patentes à medida que os depoimentos prosseguem, e não é preciso ser tão irritadiço ou apressado para chegar a uma conclusão.

As aglomerações que o presidente Bolsonaro continua a promover, e as bravatas com que impressiona seus seguidores o incriminam, mas a oposição nas ruas validam essas manifestações, não levando em conta o momento crítico que estamos vivendo. Uma terceira onda cada vez mais provável é a condenação do presidente Bolsonaro e das políticas sanitárias insanas que seu governo patrocina.

Já há documentos suficientes para provar que o governo postergou a compra de vacinas, se não por deliberação assassina, por incompetência que levou ao mesmo triste fim. De uma maneira ou de outra, o governo Bolsonaro é culpado pelos mortos brasileiros atingirem números estratosféricos, caminhando para, proporcionalmente, ser o maior do mundo.

Talvez a tragédia indiana impeça que atinjamos esse triste recorde, mas quase certamente ultrapassaremos os Estados Unidos, que estão contendo a pandemia enquanto nós continuamos com ela descontrolada. Uma pandemia como essa exigiria, desde seu início, um governo diligente que mobilizasse o país como em uma guerra, que é o que estamos vivendo.

A mobilização, no entanto, foi no sentido de negar a gravidade da doença, e a tragédia não está sendo maior ainda porque os estados e municípios assumiram uma autonomia federativa, respaldada pelo Supremo Tribunal Federal, que certamente amenizou os efeitos da doença com lockdowns e distanciamento social, a obrigatoriedade do uso de máscaras, que o presidente Bolsonaro contesta até mesmo no Supremo.

Como se o direito de ir e vir fosse mais importante do que a saúde pública. Como se os governantes, especialmente o presidente da República, não tivesse obrigação de proteger seus cidadãos numa guerra.   

O Globo, 30/05/2021