Um dos momentos mais marcantes da história do Globo foi capitaneado por Milton Coelho da Graça, então editor-chefe. Relato o episódio no livro “Tempestade perfeita, sete visões da criação do jornalismo profissional” que sairá pelo selo História Real em 20 de junho editado por Roberto Feith. O relato, acho, define bem o tipo de jornalista que Milton era, entusiasmado e sempre disposto a publicar as noticias, num momento em que a linha dura do regime militar tentava impedir a abertura política. “Definitivamente, Tancredo Neves, falecido sem poder assumir a presidência da República para a qual fora eleito, não era um político banal, e eu mesmo tive um exemplo marcante dessa sua argúcia, que me ensinou muito no trato das coisas políticas. Dias depois do atentado do Riocentro, ocorrido em 1º de maio de 1981, peguei o vôo para Brasília tendo como companhia o senador Tancredo Neves, que vinha de um encontro no fim de semana com o então governador do Rio, Chagas Freitas.
Eu escrevia a coluna da página 2 do GLOBO chamada "Política, Hoje, Amanhã" e passava a semana em Brasília. Fomos conversando sobre a gravidade dos acontecimentos até que, como quem não quer nada, Tancredo comentou: "Homem corajoso esse Chagas. O relatório oficial da polícia confirma que havia mais duas bombas no Puma".
Dito isso, mudou o rumo da conversa com a autoridade de quem não queria se aprofundar no assunto. A informação era simplesmente bombástica, sem trocadilho: se no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado havia outras bombas, ficava demonstrado que ele e o sargento Guilherme Pereira do Rosário eram os responsáveis pelo atentado, e não vítimas, como a versão oficial alegava.
Telefonei para a redação do GLOBO no Rio dando a notícia para o Milton Coelho da Graça, que era o editor-chefe da época, e ele, empolgado, disse-me que fosse para o Congresso tentar tirar mais informações de Tancredo.
No seu gabinete no Senado, Tancredo estava cercado de pessoas, pois o ambiente político estava bastante conturbado. Consegui puxá-lo para um canto e pedi mais informações "sobre as duas bombas encontradas no Puma". Tancredo me olhou sério, colocou sua mão em meu ombro e perguntou, como se nunca houvéssemos conversado sobre o assunto: "Você também ouviu falar disso, meu filho?"
A notícia foi manchete d'O Globo, deixando claro que a versão oficial de que a bomba fora colocada no carro por terroristas de esquerda apenas encobria a verdade da tentativa do atentado. Na mesma edição, o jornal trazia outro furo relacionado ao mesmo tema.
O repórter Marcelo Beraba comunicou a Milton Coelho da Graça: - Tenho uma bomba. Estou com o filme da cirurgia do major Wilson lá no Hospital Miguel Couto. Um médico fez as fotos dentro da sala, e me entregou.
Enquanto desenhava a primeira página, com a manchete sobre as duas bombas e as fotos da cirurgia no alto, Milton conta que se surpreendeu com a presença do coronel Job Lorena, responsável pela comunicação do I Exército e pelo inquérito militar instaurado sobre a explosão.
Um contínuo o conduziu até Eli Moreira, chefe da reportagem, e Milton fez uma ligação interna pedindo ao Eli “que fosse engabelando" o coronel ao máximo. Mas, pouco depois das 21 horas, o coronel veio, sorridente, apresentou-se e disse: "Eu estava conversando com o Eli, porque pensava que ele era o comandante, mas agora descobri que é você."
Disse que sabia da existência das fotos e exigia que não as publicássemos, sob pena de “graves conseqüências” para o jornal e a equipe do Miguel Couto. Milton, conforme seu relato, explicou que não era comandante, mas apenas também um coronel, que obedecia ordens de dois generais: Roberto Marinho e Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação. Evandro estava viajando e dr. Roberto também já tinha ido embora.
O Coronel Job Lorena pediu o telefone do dr. Roberto e Milton saiu do “aquário”- sala envidraçada onde o editor-chefe despachava - para supostamente pegar o número. Ligou para Roberto Marinho e falou rapidamente sobre o material que tínhamos e a edição planejada, “supersensacional”, com fotos exclusivas etc. e tal.
Explicou que o coronel estava na redação, e sugeriu que Roberto Marinho, a partir daquele instante, não atendesse mais aquele número. Dito e feito. Job Lorena ainda ficou um bom tempo grudado a um telefone, até desistir.
Pouco depois das 7 da manhã do dia seguinte, uma viatura militar foi buscar Roberto Marinho em sua casa no Cosme Velho para um encontro nada amistoso com o general Gentil, comandante do I Exército, que durou até meio dia.
À tarde, pelo relato de Milton Coelho, ele foi chamado à sala do dr. Roberto, que estava claramente de mau humor, assim que chegou ao jornal. Não disse uma palavra sobre as fotos. Só perguntou por que ele não tinha também contado a manchete em que o jornal fazia a revelação de que havia sido encontrada outra bomba no carro.
Esse é que tinha sido o tema dominante da conversa no Palácio do Exército, porque desmontava completamente a farsa que Job Lorena e o serviço secreto do Exército queriam montar no inquérito sobre o atentado. Milton alegou que não havia julgado importante consultá-lo, porque a informação tinha sido dada a mim por duas pessoas da confiança dele, Roberto Marinho: o diretor da Polícia Federal e Tancredo Neves.
Imediatamente, ele encerrou a conversa em tom de ironia e matreirice: "Então valeu a pena o que passei hoje de manhã?"