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Oitenta e um

 

Hoje de manhã, acordei cantarolando “My fair lady”, não sei o que me deu. Quer dizer, pensando bem, acho que sei sim. Essa semana fiz 81 anos de idade. Ufa!

Vocês não sabem o alívio que é fazer 81. Enquanto você ainda está celebrando os 80, é natural que todo mundo queira saber o que fez da vida, quantos livros escreveu, que filmes realizou, com quantas mulheres se casou, quem eram seus chapinhas e suas namoradas na juventude ou depois dela. É como se você estivesse entrevistando um morto que ainda se lembra e ainda pode falar. Mas que certamente não fará mais nada.

Aos 81, deixam você mais em paz. Você não precisa estar de prontidão para enfrentar os mistérios de seu acervo, nem tentar multiplicar sua obra por infinito para se destacar do “normal”. Você anda na rua tropeçando nas pedras portuguesas e os que, no ano passado, o encheram de adjetivos agora só dizem: “Lá vai ele, coitado, aos tropeços. É a idade”. O mundo fica mais leve e a vida, mais fácil de viver.

Os 80 são os anos do fuxico, quando os mais moços querem saber se aconteceu mesmo isso ou aquilo. E os mais velhos, por gentileza e bom tom, registram o que você diz com respeito e cuidado. No máximo, arriscam um palpite sobre o que você quis, mas não fez. Como se fosse necessário julgar também o que seria se fosse. Todo crítico, analista ou simples redator é sempre um autor. Dada a incerteza do real, não tem outro jeito. No fundo, Marcel Proust só se tornou um grande romancista porque sabia contar o que imaginava ter se passado na cabeça dos outros.

Neste Brasil de Bolsonaro e Pazuello, a versão tem sido sempre mais definitiva que o fato. Essa é uma das principais características da nova política nacional. Mesmo que um tenha dito na televisão, para todo mundo ver e ouvir, alguma coisa que hoje não lhe serve mais, é sempre possível falar em intenções da época e consequentemente em outros motivos. Como se a verdade fosse uma peça de teatro policial, escrita por Agatha Christie, em que o inocente é o culpado. Tudo depende só de quem elegemos testemunha de acusação. Que esse, sim, é o que interessa.

No século XVII, por ordem de Felipe II, rei da União Ibérica formada por Espanha e Portugal, Dom Fradique de Toledo Osório comandou a expulsão dos holandeses da Bahia. Como está no livro de Thales Guaracy “A criação do Brasil” (Editora Planeta, 2018), na celebração de seu sucesso, em Madri, Dom Fradique, coitado, relatou o que havia sofrido com o povo local para reorganizar a cidade. Ele mesclou as armações da população com os longos dias de sol quente e torturante, que terminavam sempre em chuvas intensas no fim da tarde. Segundo Dom Fradique, “no Brasil até os céus mentem”. O que viralizou desde então, tornando-se um mote europeu sobre nosso país.

Se Glauber Rocha fosse vivo, teria um ano a mais do que eu. Mesmo morto, Glauber vive os 80 anos mais precoces e longos de um artista brasileiro. Agora, acabam de descobrir que ele viu “Limite”, de Mário Peixoto, um de nossos mitos históricos, em 1958, e que em seguida mentiu, para poder sugerir que o filme era decadente e de direita, por causa das pessoas que o defendiam. Se entendi direito, é essa a acusação que quem sempre prestou tantos serviços e cuidou tanto do cinema brasileiro faz a um cinéfilo de 20 anos, como se ele tivesse uns 80 e estivesse amargando grandes derrotas na profissão. Que pena, para Glauber, que ele não tenha chegado a completar 81.
O Globo, 23/05/2021