Quem atentar para o número de vezes em que a defesa da liberdade está sendo utilizada para a consumação de atos nocivos à sociedade dará razão ao Marquês de Maricá (Rio, 1773-1848): “Quando em um povo só se escutam vivas à liberdade, a anarquia está à porta e a tirania pouco distante”. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques de liberar os cultos religiosos presenciais no auge da pandemia — certamente para agradar ao presidente Bolsonaro — foi errada em todos os sentidos, mesmo que a liberdade religiosa seja usada para a defesa da tese.
O “novato”, como o qualificou o decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello, foi contra a deliberação do próprio STF, que já decidira que prefeitos e governadores têm a prerrogativa para decidir sobre as restrições durante a pandemia. No afã de atender aos evangélicos, foi além do pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que estava preocupada com decretos estaduais e municipais que proibiram a realização de cultos evangélicos até mesmo para transmissão pela internet, o que é um absurdo.
Nunes Marques liberou completamente os cultos presenciais, com algumas restrições, como distanciamento entre os fiéis e uso de máscara. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de duas ações no Supremo sobre o tema, rejeitou ontem o pedido do PSD de São Paulo contra a decisão do governo de São Paulo de proibir os cultos presenciais. Para o ministro, “em cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização de proteção da vida e do sistema de saúde”.
O plenário do Supremo julgará o caso amanhã, e deverá manter a proibição, deixando claro que os atos pela internet podem ser realizados. Para dar um toque patético ao caso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo que tire a relatoria do ministro Gilmar Mendes e a passe ao ministro Nunes Marques, autor da autorização mais realista que o rei. O que uma disputa de vaga do Supremo, que pode ser decidida a favor de um candidato “terrivelmente evangélico”, não faz? Decisões monocráticas estão transformando o STF em 11 Supremos. Cada ministro tem uma ideia na cabeça e exerce seu direito de liminar, fazendo vista grossa para decisões do colegiado.
Outro uso cinicamente ampliado do que seja liberdade individual está na insistência do presidente Bolsonaro na defesa de “tratamento precoce” no combate ao coronavírus da pandemia. Ele ontem voltou a dizer que a “liberdade dos médicos deve ser total” na prescrição de remédios que possam minorar os efeitos da Covid-19. Só que não existe esse remédio, segundo orientação da Organização Mundial da Saúde. Já há decisão formal de que a cloroquina não deve ser usada, pelo alto risco, inclusive de morte. A Anvisa já detectou nove mortes devido ao uso da cloroquina ou hidroxicloroquina.
Também o novo ministro da Defesa, general Braga Netto, excedeu-se no uso da palavra “liberdade” quando disse em discurso: “As Forças são fiéis às suas missões constitucionais, de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”. Já a Constituição, em seu artigo 142, diz que as Forças Armadas destinam-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, a lei e a ordem”.
Portanto, nenhuma referência na Constituição ao papel das Forças Armadas na defesa “das liberdades democráticas”. Basta que cumpram suas missões constitucionais que estarão a salvo, sem que o artigo 142 seja distorcido para validar intervenções militares, como querem bolsonaristas de vários calões. Uso mais uma vez o Marquês de Maricá para terminar: “Os grandes empregos desacreditam e ridicularizam os pequenos homens”.