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Um Brasil poético e solidário

 

Alci, Miguelzinho e Lazinho trouxeram espigas de milho, as primeiras colhidas no milharal de Ivo e Sueli, amigos e vizinhos, e Rosilene colocou na panela. Mais tarde, Alci, voltou com imensa abóbora que foi logo transformada em doce e ainda será quibebe e sopa, tudo em fogão de lenha. Neste recanto do sul de Minas, descoberto há cinco anos, conseguimos construir um pequeno refúgio. Marcia, arquiteta, decidiu que a casa teria grandes janelas e portas de vidro, abrindo para a floresta, para vales e montanhas e, do lado direito, para a Pico do Papagaio, um dos símbolos de Minas Gerais.

Fugimos de São Paulo e aqui estamos, evitando o colapso da Covid. Momento exato. Minha idade me torna vulnerável e quero ainda gozar os anos que me restam. Não professo a teoria do genocida. Aqui aos poucos viemos penetrando na atmosfera da comunidade, lentamente porque é preciso ir com jeito. O mineiro é bom, solidário, generoso, mas confia com cautela. Marcia e Rita já apanharam o modo deles falarem, as contrações, prêle, os termos próprios, o LI quando querem dizer ALI, e dezenas de expressões poéticas. Nossa casa é conhecida como a casa da dona Marcia e foi construída velozmente por três homens, não mais. Das fundações aos acabamentos, hidráulica, pintura, Marcinho, Geovanni e Genildo cuidaram de tudo. O muro de pedra foi erguido pelo Fortunato, que manejou pedras pesadíssimas. José Messias se encarrega da horta e ali buscamos couve, feijão, alface, almeirão, vagem macarrão, couve chinesa e já temos limão plantado. Ele é daqueles que tem mão santa, planta, germina, cresce. Os governantes não conhecem o interior do Brasil, é outro mundo distante de Brasília, esse ninho de escorpiões.

Véspera de Natal, fim de ano. Não resistimos, viemos com a casa inacabada. Faltavam móveis e geladeira. A loja não teve como cumprir prazos. Logo a noticia se espalhou, eu diria que aqui é uma espécie de condado com suas casas espalhadas, o bistrô da Nilda, o Florença, onde se come truta fresca e se toma boas cervejas artesanais, algumas pousadas (desertas com a pandemia), igreja, pequena vila, chamada Maria, a piscinona da Lurdes, um campo de futebol, um Empório, o do Horlando, onde você encontra tudo, ou quase tudo. A mulher dele, Dalila, e a filha Camila ajudam a tomar conta e tudo é posto na caderneta, digo no computador. Ali é ponto de encontro, troca de informações, concentração dos times que jogam no domingo no campo vizinho

Todos os dias vinha a pergunta: ¨Chegaram os móveis da Marcia? E a geladeira?¨ Os motoristas de cada caminhão que passava pelo Horlando, ouviam a mesma indagação ansiosa: ¨Trouxe os móveis da Marcia? E a geladeira?¨ As festas de final de ano chegavam. Suspense geral. Criou-se um clima, tods inquietos. A estrada de terra para nossa casa passa em frente ao Horlando e um dia por ali circulou um caminhão baú vindo de Lagoa Dourada e Camila gritou: ¨É a geladeira?¨O motorista respondeu: ¨Não, são os móveis da dona Marcia.¨

Alegria. O caminhão seguiu rumo a nossa casa. Mas sendo estrada de terra, tinha chovido, a carga era pesada, em uma ladeira enlameada, ele atolou. E agora? Bem, o Miguelzinho, por acaso “(existe?) passou por ali de moto, olhou, viu que eram os móveis, voou em busca do Alci com o trator, desencalharam o caminhão. Este chegou em casa à noite seguido por um bando disposto a ajudar a descarregar. O que deveria ter durado três horas com o motorista e seu ajudante, virou menos de 40 minutos, todo mundo levando mesa, cadeiras, sofás, colchões armários, rindo e brincando. Foi linda a solidariedade, a disposição, o companheirismo. Sentimo-nos aceitos.

Passamos o Natal sem geladeira. Certo dia, passou pelo Horlando uma caminhoneta com uma geladeira na traseira. Tomou nosso caminho. Camila deu o alerta: ¨Chegou a geladeira da Marcia.¨ Teve gente que veio verificar. Quem veio, tomou cerveja. Preciso dizer que um dia trouxe um livro meu para o Horlando. Ele tirou uma foto, ampliou, está no ¨shopping¨, alertando que sou imortal em duas academias a Paulista e a Brasileira. Pretendo trazer livros para todo mundo, montar uma biblioteca aqui que será cuidada pela Vitória, que adora literatura. Ah, sim acabaram de trazer amendoim e pinhões recém colhidos. Este é um Brasil cordial que ainda existe.

Lembrem-se:

Faixa negra nas janelas no Movimento Luto pela vida

O Estado de S. Paulo, 26/03/2021