A poesia clássica persa é um condensado de beleza, em língua delicada: antiga e jovem, intensa e maleável, aberta e rigorosa. Seu timbre não esconde uma sublime vocação. Atenta às formas transitórias. Habitada por nuances. Herdeira de semitons. Todo um repertório de imagens que incessantemente se renova. Tema e variação: o jardim e a luz da aurora, as flores perfumadas e os espinhos, o rouxinol de amor perdido pela rosa. Língua suave e subtil, feita de símbolos e formas vicárias. E se abastece de sua própria linfa. Uma vogal apenas une umas às outras as palavras. Não se apagam as vozes de Rūmī e Hāfez. Esse mesmo frescor feriu o Divã de Goethe e a poesia de Mohammed Iqbāl.
Iqbāl, poeta paquistanês (1877-1938) mergulha nas várias línguas de sua cultura. E quando escreve em persa, filia-se a uma tradição, que lhe pertence, amorosamente. Usa o repertório para modificá-lo, mais inclinado a Rūmi que a Hāfez. Menos a Pérsia barroca, de que falava Scarcìa, e mais o tesouro sufi de águas claras. Íntimo, contudo, de Sanā’ī , Sa‘dī e Attār. A rosa e o jardim, a flauta e o rouxinol aparecem deslocados em Iqbāl. Adquirem novas ressonâncias. Um centro que desde então se descentra. Mantida entretanto a moldura simbólica.
O diálogo com Goethe inscreve-se no seio da comunidade muçulmana. Um olhar de mão-dupla, mais permeável entre Oriente e Ocidente na sua leitura corânica. E a partir do cerco de Bagdad (1258), quando se inicia uma longa crise no islão. O poeta deixa de lado a dissolução contemplativa radical, e encontra na ação o empenho na reforma do pensamento religioso, como Dante, no Paraíso, clamando por justiça. Não é Virgílio o guia de Iqbāl, mas o poeta Rūmī. Temos aqui a elaboração de uma genealogia, de um legado mútuo, fascinante e especular. As palavras de Abdālī, no Empíreo traduz sua densidade: “A força da Europa consiste na ciência e na técnica, desse fogo brilha a sua lâmpada. A sabedoria não consiste no corte da roupa, nem o turbante é obstáculo às ciências e às artes. Pouco importa como proteges a cabeça! Basta um pensamento ágil, uma inteligência aguda".
Nas alturas do Céu, Iqbāl encontra ninguém menos do que Nietzsche. Justamente no prelúdio ou no átrio do Paraíso: “Perguntei a Rūmī: ‘Quem é esse louco?’. Respondeu: ‘é um sábio alemão. Seu lugar é entre estes dois mundos, um canto antigo o que sai de sua flauta! Suas palavras foram ousadas e grandioso o seu pensamento. Cortou a Europa em duas partes com a espada de suas palavras. A sua melodia rompeu a corda de seu alaúde.” Quem é capaz de colocar Nietzsche no Céu, pode sondar a delicada fronteira da alteridade. Iqbāl é o poeta do encontro, além de fortes e fronteiras, segunda a expressão de João da Cruz. Uma nova inscrição em que a paz se redesenha.
Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 24/03/2021