O Centrão nasceu ideológico e se eternizou na política brasileira pelo fisiologismo. Grupo suprapartidário de centro-direita, foi criado no final do primeiro ano da Assembléia Nacional Constituinte para neutralizar o perfil de esquerda que ganhava corpo com a eleição do senador Mario Covas líder do MDB na Constituinte.
A reação das lideranças conservadoras de PFL, MDB, PDS e outros partidos menores mostrou-se uma base partidária forte, logo cooptada pelo presidente Sarney, que considerava dois pontos inegociáveis: sistema de governo presidencialista e mandato de cinco anos. Nessa troca de favores, surgiu a célebre frase de São Francisco de Assis “é dando que se recebe”, descontextualizada pelo deputado Roberto Cardoso Alves, um dos expoentes do Centrão.
Ao se oferecer ao presidente Bolsonaro como escudo congressual, fazendo o de sempre em relação a todos os governos seguintes, de Collor a Dilma, o Centrão tornou-se o instrumento da reação do establishment político ao combate à corrupção que, como previu o então senador Romero Jucá, une “o STF e tudo o mais” para “estancar a sangria”. A nomeação do ministro Nunes Marques, com o apoio dos filhos de Bolsonaro e do senador Ciro Nogueira, garantiu a maioria da 2ª turma do STF.
Dois acontecimentos recentes mostram que a tarefa, que a economista Maria Cristina Pinotti chamou de “legalização da corrupção”, não será tão simples, mesmo que os ventos da política tenham mudado: a derrota do presidente da Câmara Arthur Lira na aprovação da “PEC da Impunidade”, e a reação do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de investigar os procuradores de Curitiba da Lava Jato com base nas conversas entre eles obtidas ilegalmente através de um hacker.
Lira proibiu em plenário a palavra “impunidade” para se referir à PEC, mas, como não sou deputado, posso chamá-la assim. O interessante é observar que essa proibição se deu justamente no debate sobre imunidade parlamentar por “opiniões, palavras e votos”. A PEC atual, redigida como resposta ao caso do deputado Daniel Silveira, não tem nenhuma cláusula de equilíbrio, suas disposições são apenas para proteger o parlamentar. Não exige que o Conselho de Ética atue de fato; coloca a punição dos exageros verbais nas mãos da maioria dos Parlamentares – o que significa que apenas os da minoria serão ameaçados.
O acusado ficar à disposição da Comissão de Constituição e Justiça seria admissível, por exemplo, se se fixasse especificadamente as alternativas: ser recolhido à prisão; ser recolhido à sala de Estado-Maior; prisão domiciliar absoluta. A alteração do sistema de fiança não parece razoável, e por isso terá que ser mudada na Comissão Especial. Se o Adélio Bispo fosse deputado, deveria estar solto?
Já o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, foi brincar com fogo e acabou se queimando. Começou com uma onda contra seus Procuradores, agora está recebendo o troco: a possibilidade de o Ministério Público vir a ser atacado e julgado pelo STJ. Aras, com proximidade promíscua com o governo Bolsonaro, se aproveitou do STF para acabar com a Lava-Jato, e está vendo que pode acabar sendo um tiro a sair pela culatra. Todos os procuradores estão preocupados, porque essa atitude do Judiciário reduz a possibilidade de atuarem.
O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas do Rio, acha que o término da Lava-Jato não é necessariamente sinônimo de retorno da predação. “Existe um legado organizacional, institucional, tecnológico e político deixado pela Lava Jato, e não por acaso Sérgio Moro, de acordo com os institutos de pesquisa, é o único que derrotaria Lula e Bolsonaro”, lembra.
Ele ressalta que “os riscos e custos de comportamento desviante aumentaram exponencialmente no Brasil com a Lava- Jato, que é vítima de seu próprio sucesso”. Carlos Pereira acha que “é preciso fazer uma distinção entre retrocessos na política de combate à corrupção e retrocessos institucionais”. Ele não tem dúvida de que no governo Bolsonaro estamos tendo o primeiro tipo de retrocesso, “mas o segundo, o institucional, será mais difícil”. Ele destaca que “as organizações de controle e a sociedade, especialmente a mídia, estão e vão continuar resistindo. Existem rotinas, procedimentos, corpo técnico”.