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Perdemos Gaia

 

Já não sei por onde começar. Sejamos fortes para buscar saídas. Não posso hesitar quando a realidade vocifera, mostrando-se impiedosa. A grande aceleração abriu feridas no sistema Terra. O projeto de crescimento ilimitado requer sua paga. Tornou-se impossível rolar a dívida. A era geológica do Capital, o assim chamado Capitaloceno, hipotecou todo o futuro. Cessaram as nuvens. Perdemos o azul. Ausentes, o Sol e a Lua. Fugiram as estrelas. Custa dizer, mas vou ao ponto. E sem rodeios: a abóboda celeste caiu! Ouviram muito bem: o céu desabou. Um vazio descomunal. Vazio como o céu de Pirandello. Maior que a angústia de Pascal.

Não foi por falta de aviso. Uma voz na floresta disse mil vezes que se não impedíssemos o desmatamento, a queda seria fatal e irreversível. Foi justamente o que se passou. Cometemos um crime ominoso. Perdemos a floresta. Perdemos Gaia. 

Furiosos e desalojados, os celestes, ensaiam resposta. Parte de nós saiu despedaçada, com o fogo de Prometeu, engolindo nosso planeta.

O céu é feito de peles e camadas. Inúmeras instâncias e dimensões. Há muito céu guardado no céu. Quanta metafísica suspensa! O mistério transparente do azul. Sonho e poesia. Beleza e infinito. Sempre houve céu. Nunca deixou de haver. Perdido agora neste chão de iniquidades.

Estamos em 2150, no coração de Devastópolis, entre o deserto do Pantanal e a savana amazônica. O tempo das catástrofes passou. Navegamos no pós-apocalipse. Rios de amônia e mercúrio escorrem pesados. Não há peixes. A água potável acabou, substituída por um líquido industrial reciclado. Calor tremendo. Só os repteis se multiplicam. A flora limita-se a mangues de gigogas. As poucas árvores, desprovidas de beleza, seguem cansadas. Os pássaros perderam suas virtudes, ápteros e afónicos. A humanidade não chega a quatro biliões e a expectativa de vida é de 52 anos.

O ciclo das pandemias, de que a Sars-coV-2 foi a antessala, abriu a caixa de Pandora. Os negacionistas do futuro seguem coerentes. Insistem na “inocência do carbono”, para não mencionar a bondade do plutónio, a exploração da Lua e Marte, após o esgotamento da Terra. Padecem do mesmo não saber, que o DSM do século XXII regista como agnosite, doença de quem ignora. Defendem a platitude da Terra e das mentes, a idolatria das leis de mercado, com o indisfarçável ódio a Keynes, considerado um líder comunista. 

Uma junta de teólogos governa o mosaico do antigo ecúmeno, reduzido a um longo arquipélago de biomas devastados. Mas por favor, não desanimem. Não pensem que escolhi tema ingrato só porque vivemos tempos ingratos. Sei que deveria ser mais otimista. Confesso o desacerto e quase me arrependo. O final será mais leve. Estamos falando de um futuro distante, talvez ainda reversível, a depender do conjunto de nossas atitudes.

De mais a mais, há sempre boa notícia, mesmo quando não. Em 2150 os guaranis alcançaram a Terra sem Males, o Yvy marã e'ỹ. Os yanomamis começam a recompor o firmamento. A cidade de Compost, visitada por Donna Haraway, ensaia a afinidade entre as espécies, a simbiose de humanos e borboletas, com a famosa geração das Camilas. Não falo de países, porque a obsessão com o estado mínimo decretou o fim das grandes extensões geopolíticas.

Há um poeta glosado no pós-apocalipse, de língua escura e suave: "Sor'aqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta. Sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba". ("Irmã água, que é muito humilde e preciosa e casta. Nossa Terra, mãe e irmã, que nos sustenta e governa, e produz diversos frutos, com coloridas flores e ervas." 

Ao fim do poema, todos suspiram saudosos. E cobrem de insultos os antepassados que pouco ou nada fizeram para impedir a quebra do céu.

Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 10/02/2021