Desde os romanos até a sala de aula digital de uma faculdade, o direito de propriedade significa usar, gozar e dispor da coisa. Do bem material ou imaterial. Fungível ou infungível.
O problema no correr da história tem sido o de dar um significado o mais permanente possível a estas palavras. Difícil. Porque a regra do mundo é o mudar.
Recentemente, nos Estados Unidos, diante da pandemia, tomou-se uma medida inédita. Primeira vez, se não me engano – ou que se saiba aqui nos trópicos. Em setembro deste ano, o Centro de Controle de Doenças (CDC), uma agência federal com competências reguladoras vinculada ao Ministério de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, impôs uma moratória nacional nos despejos de locatários que não conseguem pagar seus alugueis até dezembro. Ontem, o CDC prorrogou essa moratória até janeiro de 2021.
Em outras palavras, o locatário que não pagar o aluguel porque ficou desempregado e sem renda não pode ser despejado pelo locador. Colocado na rua. Tudo indica que as ruas estão cheias com o desemprego altíssimo.
O locatário ficou com direito a até mais cinco meses de uso da propriedade alheia sem pagar.
Ou seja, estão copiando a Rocinha.
Isto mesmo. Digo a Rocinha, aqui em São Conrado.
Na década de oitenta, fiz uma pesquisa sobre o direito real de propriedade na Rocinha. Não era o direito da Constituição e do Código Civil, o direito positivo estatal, o que prevalecia lá. Como não é ainda, e que abrange mais de 200 mil pessoas.
Uma de minhas alunas, Rosemery Duarte, hoje promotora, ali morava. Conhecia tudo e todos. A Rocinha tinha, por exemplo, cerca de seis cartórios informais, com livros de registro de escritura, testemunhas, certidões etc... Tudo ilegalmente legal. Funcionava suficientemente. Ou seja, o direito às vezes não precisa ser legal. Basta parecer ser.
Uma das regras não escritas deste mercado imobiliário, legítima porque aceita, era razoavelmente eficaz: se o locatário perder o emprego, o locador não podia despejá-lo por um mínimo de três meses ou até conseguir outro emprego. O que ocorresse antes.
Não se trata de filantropia social entre os que não têm para os que não têm. Existe uma lógica econômica por detrás desta conjuntura. É a seguinte.
De alguma maneira, o proprietário também tem que correr o risco econômico da escolha que livremente fez. Ninguém o obrigou a alugar. A cláusula contratual comunitária é apenas um acordo informal entre as partes, tendo em vista uma pré-repartição do risco em que ambos resolveram incorrer.
É uma cláusula do mercado dos invisíveis, como diz e repete nosso ministro Paulo Guedes. Como que encantado com a descoberta de um novo conceito econômico-financeiro: a invisibilidade do humano. Ou melhor, na linguagem clássica econômica: o humano como uma "externalidade" passageira.
Uma vez, em São Petersburgo, antes de Putin, perguntei a um engenheiro russo com quem estava almoçando: por que os russos pareciam gostar mais de Yeltsin do que de Gorbachev?
Hesitou muito em responder. Não havia ainda tanta liberdade para tanto. Mas depois de algumas vodkas, em voz baixa, revelou.
O povo russo não confia mais em Gorbatchev. Quando ele assumiu, há seis anos atrás, prometeu que todo russo ia poder comprar o apartamento onde morava. Não cumpriu. Não cumpriu com a promessa do direito de propriedade.
O diabo não mora nos detalhes apenas. Mora na conjuntura histórica também.
Ou, como diria Lord Keynes a um interlocutor que lhe cobrava a coerência de suas ideias: "Se as circunstâncias mudam, você muda também?"
Bom 2021.