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Uma lição chocante

 
A chocante decisão do ministro Marco Aurélio, de soltar o chefão do tráfico condenado em segunda instância, nos dá a chance didática de uma análise rigorosa sobre o país que estamos deixando para nossos filhos.
 
O juiz supremo explica que apenas cumpriu o que manda uma lei recente, criada e aprovada pelo Congresso. Sancionada pelo chefe do Executivo, que a fez entrar em vigor. Tudo nos conformes democráticos. Por gente que atirou no que viu e acertou no que não viu. Se é que foi isso mesmo.
 
Deixando de lado a evolução do caso específico, podemos até bancar os ingênuos e dar um crédito a quem criou essa aberração: o de fingir que engolimos a pílula de seu cuidado em evitar abusos na prisão preventiva e garantir a presunção de inocência até a ultima gota, mesmo de quem tem duas condenações em segunda instância. Mas podemos ao menos reconhecer que a turma está exagerando, não?
 
No mínimo, questionar essa atitude. Desconfiar que o pessoal que faz leis talvez esteja passando dos limites, em seu afã de impedir que um dia eles mesmos sejam punidos ou que decisões de segunda instância em colegiados mantenham condenados na prisão. Suspeitar que o lobby de malfeitores talvez venha se dando bem demais, ao impor à nação essa obrigação de “liberar geral”, após dividir juízes entre punitivistas e garantistas. Como se a punição de um delito, prevista em lei de modo a proteger a sociedade, fosse incompatível com a garantia dos direitos humanos. Como se toda colaboração premiada fosse delação abjeta e mentirosa. Como se todo crime ambiental fosse invenção da indústria de multas. Como se os corruptos fossem inocentes e o dinheiro apreendido e os bilhões já devolvidos fossem uma miragem. E as contas no exterior não declaradas fossem um delírio da cooperação internacional. Como se fosse um dever democrático usar o Congresso como asilo para Flordelis e Chico Cueca.
 
A lição do ministro escancarou a extensão dessas garantias exclusivas do Brasil. Não dá mais para ignorar os efeitos do que estamos fazendo.
O Globo, 26/10/2020