O acadêmico Zuenir Ventura há alguns anos utilizou o conceito sociológico de cidade partida para caracterizar a profunda cisão social da cidade do Rio de Janeiro em dois universos justapostos e desiguais, fenômeno que se repetia em outros núcleos urbanos brasileiros e de outros países.
E quando o fenômeno abrange todo um país, toda uma sociedade?
Na vida das nações podem existir incompatibilidades tão radicais que ao gerarem polarizações dicotômicas segregam regiões, classes sociais ou posições ideológicas. Podem ainda ultrapassar as identidades locais e regionais, como aconteceu na Reforma protestante, quando a crise do mundo cristão dividiu a Europa horizontalmente entre um norte luterano ou calvinista e um sul católico.
A dissenção pode ser tão profunda que os antagonismos e as visões de mundo se mostrem aparentemente inconciliáveis por uma ou por muitas gerações. Isso ocorreu com as guerras de religião na França do século XVI ou na Alemanha do XVII, que separaram católicos e protestantes, as guerras civis inglesas, as sequelas dos conflitos entre ingleses e irlandeses estendidas por três séculos ou ainda as da guerra civil espanhola.
Com frequência encontramos nesse grande quadro trágico um nicho específico, o conflito servindo de referência para tomadas de posição e desdobramentos posteriores da sociedade. Dessa referência, composta quase sempre de simplificações e maniqueísmos, pretendo tratar aqui.
A hipótese que considero é a de que ocorrem momentos na história das sociedades nos quais há rupturas profundas, estruturais, que são revisitadas por várias gerações e dividem seus descendentes de maneira radical. Como se existissem duas raízes, diversas e antagônicas, para o mesmo corpo. E por que permanecem, podemos perguntar?
Suponho que existem duas formas de responder. A primeira e mais óbvia, porque os fatores que motivaram as rupturas continuam presentes na realidade social e assim polarizam as pessoas e suas escolhas. A segunda, porque embora os fatores que as motivaram tenham desaparecido ou mudado substancialmente, os valores que embasavam as diferentes tomadas de posição permaneceram vivos, ressurgindo em diferentes avatares. Num e noutro caso as feridas permanecem abertas, provocando dores e recorrências. Dessas situações poderíamos dizer como William Faulkner que “o passado não morreu, nem mesmo é passado”.
Dois exemplos clássicos dessa polarização são os modos pelos quais a Guerra Civil norte-americana e a Revolução Francesa serviram e servem de referência para sucessivas tomadas de posição. Nos Estados Unidos, com a longa e persistente luta pelos direitos civis e a integração racial; na França, pela luta entre a tradição revolucionária, jacobina ou moderada e a tradição anti-revolucionária.
Temos nesse caso uma situação típica de casa dividida.
Em 16 de junho de 1858, o advogado Abraham Lincoln ao ser indicado para concorrer ao Senado norte-americano pelo estado de Illinois, eleição na qual seria derrotado, fez um de seus mais memoráveis pronunciamentos. Junto a outras elocuções, como a fala inaugural do segundo mandato presidencial e o célebre discurso de Gettisburg, o pronunciamento da “Casa Dividida” foi um marco não só da retórica política como da ameaça de secessão que pairava sobre os Estados Unidos.
Suas palavras tomaram como mote Mateus 12:25, ao afirmar que “todo reino dividido contra si mesmo é devastado”. Ou segundo Lincoln:
“Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir. Eu acredito que este governo não pode suportar de modo permanente ser metade escravo e metade livre. Eu não espero a divisão da União. Eu não espero que a casa desabe – mas espero que ela deixe de ser dividida.”
Em ambos os momentos históricos, o da Revolução Francesa e o da Secessão, podemos identificar aspectos que permitem traçar paralelos interessantes.
Em primeiro lugar, os dois conflitos partiram de contextos anteriores extremamente polarizados, quer por posições ideológicas irredutíveis, quer por necessidades concretas, quer pelos dois motivos. A época que antecedeu a Revolução Francesa assistiu a um adensamento da radicalização contra a sociedade estamental e seus privilégios de ordens e contra o peso de um Estado crescentemente endividado e percebido como ineficiente. Nos Estados Unidos, algumas décadas depois, a radicalização ocorreu entre estados agrários, livre-cambistas e escravocratas do Sul e estados industriais de cunho protecionista e de trabalho livre do Norte, com algumas unidades da União oscilando por algum tempo entre as duas posições.
Em segundo lugar, foram conflitos dilacerantes do tecido social. Na França, após o esvaziamento do poder dos grupos moderados, que produziram a monarquia constitucional de 1791, coube aos jacobinos da Convenção ditar o curso dos acontecimentos. O Terror consequente produziu a revolta da Vendéia e a própria derrubada dos radicais dois anos depois de ascenderem ao poder. Mas muito mais que isso, deixou feridas que reapareceriam em diferentes momentos da história francesa, o que fez nosso Oliveira Lima constatar no início do século XX que a França se dividia ainda entre o vermelho e o negro.
Nos Estados Unidos o trauma não foi menor. A mortandade foi intensa: 750.000 soldados mortos de ambos os lados, além de um número até hoje ignorado de civis, correspondendo a 2,4% da população do país em 1860. Mesmo sem ser uma “guerra total” como aconteceria mais tarde, mobilizou a União, interferiu na vida de todos os seus habitantes e levou Mark Twain a comentar quase meio século depois, em 1910:
“[a guerra] rompeu instituições centenárias, mudou a política de um povo, transformou a vida social de metade do país e impactou tão profundamente em todo o caráter nacional que sua influência não poderá ser medida antes de duas ou três gerações”.
Em terceiro lugar, o processo histórico modernizador que se seguiu em ambas as sociedades – em especial a expansão da Revolução Industrial, as transformações sociais e a reconfiguração do Estado – foi frequentemente lido em ambos os países à luz dos traumas que haviam sofrido.
Na França os momentos de crise que se seguiram à Revolução reavivaram a polarização, impedindo que as cinzas esfriassem completamente. Revoluções em 1830 e 1848, Comuna de Paris, o caso Dreyfus, o movimento da Action Française de Charles Maurras, o colaboracionismo do governo Pétain na Segunda Guerra Mundial, a resistência contra a independência da Argélia e a Frente Nacional liderada pelos Le Pen evidenciaram conflitos em que a Revolução foi revista e reinterpretada. O diagnóstico de Oliveira Lima continua atual.
Nos Estados Unidos a divisão provocada pela Guerra Civil desencadeou atitudes semelhantes, que mantiveram vivas as percepções do conflito. O período da chamada “reconstrução” compreendeu a promulgação da 14ª. e 15ª. emendas à Constituição, garantindo o direito de voto aos libertos, sem impedir a continuação de conflitos e as práticas segregacionistas. As emendas, o ato anti-Ku Klux Klan de 1871 e o segundo ato dos Direitos Civis de 1875 revelaram-se pouco eficazes e o racismo larvar se prolongaria pelo século XX, com momentos de recrudescimento. No imediato pós-guerra o Comitê dos Direito Civis instalado pelo presidente Truman referiu-se à segregação como “fratura na sua fibra moral” [dos Estados Unidos] e na década de 1950 intensificou-se o movimento pela integração racial, que culminou com a marcha sobre Washington liderada por Martin Luther King. Longe de ser apenas uma lembrança histórica, o problema ressurge periodicamente em conflitos, marchas – inclusive supremacistas – e disputas por símbolos e emblemas. Na literatura a escritora Toni Morrison, prêmio Nobel de 1993, publicou em 1987 o romance Amada, no qual narra a saga de uma escrava, alternando os tempos anteriores e posteriores à Guerra Civil.
A Revolução Francesa e a Guerra Civil dos Estados Unidos são dos temas mais visitados e revisitados, tanto na pesquisa acadêmica, quanto em publicações, filmes e seriados de TV para o grande público. Claro está que há outros motivos para este interesse, mas ele também se explica porque revela fissuras vivas, não cicatrizadas em ambas as sociedades.
A revolta da Vendeia, esmagada pelo poderoso exército jacobino da Convenção ou a marcha devastadora do general Sherman na Georgia até hoje são lembradas naquelas regiões com horror – e rancor. Mas teriam certamente um significado menor se outros fatores muito maiores, como as contradições do desenvolvimento de uma sociedade moderna na França ou do estabelecimento de uma sociedade igualitária e um Estado federal nos Estados Unidos não tivessem provocado cisões na psicologia coletiva ao longo do tempo, com irrupções mais ou menos traumáticas em determinados momentos.
Casas divididas que podem servir de exemplo para outras sociedades, cujas polarizações possuem potencial para se estender por muito tempo, também ultrapassando gerações. E que geram intolerância, restringem a liberdade, acanham o espírito crítico e atrofiam a cultura.