Para Ercília Lobo
Pois eu nem imaginava que Zuza morreria um dia. Morreu pouco depois de ter terminado um livro sobre João Gilberto. Imaginemos que livro saiu de sua cabeça enciclopédica. Era fascinante. Você conversava sobre música popular brasileira e ele sabia tudo, dos cantores e compositores mais remotos aos atuais. Você falava de jazz, de música norte-americana e ele respondia, sem jamais acessar o Google e suas imprecisões. Zuza foi dos raros teóricos que falava de música e conhecia, porque também foi músico. Diferenciado, não era o chato que abria a boca e não parava mais. Não espantava a roda, agregava.
Eu trabalhava na Última Hora, nos anos 1960, arranhava o inglês e era designado para cobrir artistas internacionais. Um dia, me mandaram entrevistar Cab Calloway. Não tinha a menor ideia de quem era. No arquivo do jornal, zero. Nenhuma nota. Liguei para o Zuza. Não sei se foi a Record que trouxe o americano. Zuza me ditou as perguntas. E pediu: “Pronto o texto, me ligue, faço os acertos”. Tudo por telefone, não existia internet. Fui entrevistar Calloway no Hotel Danúbio. Era um negro alto (para mim) e tinha dentes que não acabavam mais. Gentil, no final, perguntou: “Achei que ninguém me conhecesse por aqui e você sabe tanto. Vou cantar para você Minnie the Moocher”. Sua marca registrada. Cantou para mim e para o fotógrafo Wilman Rodrigues.
Cada artista que a Record trazia, o Zuza ligava. “Marquei tal hora para você.” Eu ia, ele estava lá. Quando Sammy Davis Jr. veio a São Paulo, estava recém-casado casado com a loira sueca May Britt. Ela se converteu ao judaísmo. Naquela época, uniões inter-raciais eram proibidas pela lei em 31 Estados da América do Norte. Os racistas caíram de pau. Na segunda noite, cedo fui ao Teatro Record, Zuza me levou ao camarim de Sammy, batemos, ele mandou entrar, estava ao fone. Fez com a mão: esperem um pouco. Ansioso por um “furo” (notícia exclusiva, para quem não conhece o jargão), perguntei: “Está falando com May Britt?”. Ele largou o fone, começou a gritar: Paulinho, Paulinho, Paulinho. Saiu do camarim, foi para o teatro vazio, aos berros: Paulinho, Paulinho. E Paulinho Machado de Carvalho, dono da tevê, apareceu, me mandou sair de perto. Não sei como a questão foi resolvida, me mandei do teatro. Achei que seria a última reportagem de minha vida, Sammy não cantaria aquela noite, Paulinho reclamaria do prejuízo com o Samuel Wainer, dono do jornal, eu seria demitido. Nada disso. Na noite seguinte, estive com Sammy no Hotel Othon, ele estava com Norma Bengell no apartamento. Foram para a boate Michel, a mais elegante da época. Consegui o “furo”.
Uma vez, precisei entrevistar Jane Russell, que tinha sido uma das sex symbol do cinema americano. Todos nos lembrávamos de Os Homens Preferem as Loiras, em que ela fez dupla explosiva com Marilyn Monroe. Liguei para o Zuza – ele nunca se chateava, estava sempre disposto a dar ajuda. Pensou um pouco, arriscou: “Veja se consegue tirar a mulher do hotel e vá para a rua com ela. Chega dessas entrevistas chochas com o artista num sofá, não se sabe onde a pessoa está”. Consegui convencer Jane, ela gostou da ideia, deixamos o Hotel Cambridge, na época uma referência de luxo, hoje um prédio ocupado, e andamos poucas quadras na Nove de Julho, com barulho infernal de ônibus e muita poluição. Saiu uma foto enorme na primeira página.
Cada um de nós tem uma série de momentos com Zuza. Guardo a felicidade dele ladeado por Ercília, na noite em que tomou posse na Academia Paulista de Letras.