Os antropólogos brasileiros nos falam de nossa formação, a partir do encontro entre os nativos e os civilizados, navegantes sujos e doentes, ávidos por riquezas, moralmente dispostos a tudo para não perder a oportunidade que a vida, Deus ou a sorte lhes davam com o novo mundo, prontinho para ser usado e explorado pela cobiça deles. Do outro lado, estavam, como escreveu Darcy Ribeiro, “a inocência e a beleza encarnadas”, um povo original, tentando entender aquela gente tão diferente. O poder acabou nas mãos dos que chegavam, os que escreveram a história e decretaram o que somos, um povo ao mesmo tempo cruel e generoso.
Hoje, no Brasil, vivemos um culto da crueldade. Não estamos nos referindo apenas aos grupos radicais de direita no poder ou ligados ao poder, que propõem a eliminação dos que não pensam como eles. Estamos falando de hábitos e costumes populares, de inesperadas ações cotidianas, quase sempre espontâneas, às vezes até inocentes.
A mais recente demonstração dessa perda de generosidade, em nome de regras e leis sobre as quais não refletimos, é o caso da menina de 10 anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que apareceu grávida em decorrência do estupro sistemático de seu tio, praticado desde seus 6 anos de idade. Durante quatro anos, uma criança sofre tal violência, sob pretextos que a mente perversa do adulto deve ter criado, e grande parte da população pune (ou deseja punir) a vítima.
Segundo nos informa Flávia Oliveira, sempre atenta à desigualdade no país, só em 2018, mais de 21 mil bebês nasceram de mães com menos de 14 anos de idade. É nessa faixa de idade materna que se encontra o maior número de óbitos infantis, determinado pelas condições sociais e de saúde das mães precoces. Nosso Código Penal considera crime a relação sexual com menores de 14 anos, mesmo quando consentida. Conheço uniões com enorme diferença de idade em que os cônjuges são felizes até hoje. É muito difícil legislar sobre o amor, ele é sempre uma exceção. Mas a lei não impede que, no Brasil, quatro meninas nessa faixa etária sejam estupradas por hora.
A capixaba poderia, pelo menos, passar anônima por essa tragédia, no início de sua vida condenada ao sofrimento. Mas o fundamentalismo religioso, hoje exercido de modo medieval por parte de nossas autoridades, não deixou que nem isso ocorresse com essa vítima de nossa crueldade. Uma tal de Sara de muitos sobrenomes, ex-assessora e declarada discípula da ministra Damares Alves, pastora no Ministério da Mulher (?), Família (??) e Direitos Humanos (???), descobriu e deu, em redes sociais, o nome, o endereço da família e as características da menina de São Mateus (que seria negra, pobre e criada pelos avós). Ela anunciou o hospital em que a mãe violentada faria o aborto legal, incentivando grupos religiosos a se manifestar contra a interrupção da gravidez. A menina acabou tendo que deixar o Espírito Santo, indo se cuidar no Recife.
O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX, estabelecida por motivos políticos e hereditários. Nem Cristo, nem nenhum dos fundadores de sua Igreja, se manifestou sobre o assunto. É difícil estabelecer regras rígidas para essa questão, mesmo que apenas do ponto de vista civil. Mas, em qualquer circunstância, para qualquer civilização, povo ou religião, é claro que o estupro é uma barbárie que não pode ser consagrada como boa origem de uma vida. Muito menos quando se trata de uma criança, que terá sua vida destruída por um erro ou um crime que não foi ela que cometeu.
Os que se manifestaram contra o aborto da menina não foram apenas militantes políticos que estão sendo processados por atividades antidemocráticas ou religiosos ignorantes e intolerantes, mas também autoridades formais de uma Igreja que tem hoje um líder que pensa, o Papa Francisco. Em que país estavam essas autoridades quando tantos meninos e meninas pobres foram mortos por balas perdidas ou bem miradas no alvo? Nunca vi nenhum deles acender velas públicas por essas crianças, como João Pedro, Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Agatha, Ketellen e muitos outros. Essas, sim, são mortes que podiam ter sido evitadas.