Mais de cem mil mortos. Como uma bomba atômica, em Hiroshima. Não são mera estatística. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, dizem os médicos. Não se trata então de mortes, e sim de crimes. Há responsáveis que um dia terão que responder por elas. Eles sabem o que fizeram. Ninguém fala pelos mortos, eles falam por si. Resta saber quem vai ouvi-los.
Convivemos com o horror esterilizado em estatísticas diárias, mesmo se a mídia combate a epidemia com informação e mantém viva a indignação. Todos perdemos a existência real, não só os mortos transformados em números e enterrados em covas rasas. Também os sobreviventes, uma população incorpórea, bustos que se encontram no zoom encenando uma falsa normalidade. Essa vida imaterial cria uma distância entre nós e a realidade, improviso de sobrevivência que, por um lado, nos salva, uma salvação precária que logo se esfuma, por outro, amplia a dor da perda do convívio e a nostalgia do momento em que, passado o perigo, reencarnados, cairemos nos braços uns dos outros.
O preço da sobrevivência será nunca mais escamotear a existência da morte, assim como a urgência e o valor da vida. Ninguém sairá ileso desse mundo virado pelo avesso. Cem mil mortos marcam para sempre a história de um país como a sua maior tragédia e, como uma cicatriz, as gerações que estão vivendo esse pesadelo. A menos que tenhamos nos transformados todos em robôs de nós mesmos.
Não podemos mais ser quem éramos e, ainda não podendo ser outra pessoa, hoje habitamos uma terra de ninguém. Vai passar, sairemos desse território psíquico inóspito.
No fim do túnel brilha uma vacina. Essa promessa pede resiliência e cuidados redobrados. É o mínimo que devemos aos cientistas. Não vamos morrer na praia. A ciência, ao contrário das religiões que se apoiam em dogmas e certezas, trabalha com autocorreção, ensaio e erro — exceto, é claro, na Rússia que faz milagres — e assim progride. Seus tempos não são os das nossas urgências. Que sejam então os das nossas esperanças.