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E o mundo não se acabou

 

Aos 95 anos do GLOBO.

Comecei aqui no dia 30 de janeiro de 1999, em meio à ameaçadora previsão do “bug do milênio”, que deveria ocorrer no réveillon seguinte. Com a mudança de dígitos, os computadores do planeta entrariam em pane e se confirmaria a crença supostamente bíblica de que “o mundo não ultrapassaria 2000”.

Eu saíra do “Jornal do Brasil”, numa transferência nada fácil. Dizia-se que o JB era de esquerda e o GLOBO, de direita. Na manhã em que foi publicada minha primeira coluna, eu estava andando no calçadão de Ipanema quando um gaiato passou de bicicleta e gritou: “Zuenir e Verissimo traidores!”. Pensei: “comecei mal”.

(Aproveito para agradecer aos que tornaram essa mudança possível, principalmente a Merval Pereira, que me convenceu a trocar de casa, e a Rodolfo Fernandes, que me recebeu de braços abertos).

A cidade vinha de uma onda de violência sem precedentes, com o tráfico de drogas se expandindo nas favelas, tiroteios nos morros e no asfalto, chacinas com a participação de policiais e uma inédita série de sequestros.

Foi então que, em 1995, surgiu a campanha “Reage Rio”, organizada pelo Viva Rio e encampada pelo carismático Betinho. A sociedade se mobilizou, e uma passeata foi convocada para novembro. No dia do evento, O GLOBO publicou uma primeira página quase toda em branco, com uma enorme palavra “PAZ” no centro. A ousadia lhe valeu o Prêmio Esso de Criação Gráfica e a Medalha de Prata da Society for News Design.

Na hora da manifestação choveu muito, o que não impediu que uma multidão vestida de branco, cantando e gritando palavras de ordem, ocupasse a Avenida Rio Branco. Na comissão de frente, mães iam empurrando carrinhos com crianças de uma creche da favela Pavão-Pavãozinho. A capa do dia seguinte trazia em manchete a tradução literal de uma metáfora: “O Rio de alma lavada”.

Na passagem de 1999 para 2000, o jornal publicou outra edição memorável, mas essa é outra história, como diz um famoso colunista.

Ah, sim, um detalhe: o mundo não se acabou e eu, ao contrário do que cantou o genial Assis Valente, não “beijei na boca de quem não devia”.

O Globo, 29/07/2020