Je donne des aulas na Sorbonne. Foi o que disse um desembargador ao rasgar a multa na cara do guarda. Que orgulho deve ter sentido dessa coragem. Tornou-se homem, desafiador. Levitou. A frase em francês, por ele dita ofenderia os ouvidos de Fanny Marracini, que morreu quase aos 100 anos, depois de ter ensinado dezenas de gerações de araraquarenses a ler e a falar francês. Mon Dieu! exclamaria horrorizada, porque amava como poucos a língua. Nunca me esqueço do primeiro dia em que entrou na classe, nos levantamos e ela cumprimentou: “Bom dia, meus alunos”. Seguido por: “Esta é a primeira e última vez que vocês ouvem falar português em minhas aulas”. Emendou: “Bonjour mes enfants”.
Fanny ao ouvir a frase em suposto francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não. Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem sabe no ugarítico?
Na mesma viagem, cheguei a Milão e Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?
O que me incomodou foi um homenzinho que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto. Quem não sabe ler e escrever.
Fiquei intrigado. Como pode ser analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei. Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender. Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto?
Naquela hora me veio velhíssima história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente, que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante dignidade.