Séneca foi um dileto amigo de Montaigne. Foi sem saber que seria. Amigo no campo ideal, das afinidades eletivas. Como Dante e Virgílio, Goethe e Hafez. A espessura do logos vence a distância de séculos. Amizade de mão única, improvável. E, no entanto, ocorrida, à revelia.
Montaigne é um asceta dos livros, viajante imóvel, a percorrer o mapa-mundi de sua biblioteca, solitário, entre as vozes do passado e do presente, com a bússola, inquieta e febril, que aponta para o não-saber.
Séneca é um anfíbio, entre o mundo e a solidão, entre o espaço de poder e a oficina do pensamento, a cidade e a natureza, ditando cartas e tratados memoráveis. Sua morte encerra um gesto filosófico maior, prova cabal de rigor estoico e adesão a princípios graves.
Não seriam amigos, talvez, se partilhassem o mesmo corte temporal.
Ainda que fossem vizinhos, o apelo do mundo seria diverso para atender às suas demandas inegociáveis. Tornaram-se próximos, apenas e tão somente, porque distantes, e através da leitura, formidável máquina do tempo, que rompe barreiras de todos os géneros e promove a cultura da boa vizinhança.
Duas almas inquietas em busca de paz. A ira sinaliza uma disfunção, cujo remédio consiste na prática do adiamento, na resposta temperada, nunca irrefletida. Bela, a ideia de escala, na ofensa individual dentro de uma dimensão que ultrapassa o indivíduo e rompe, em perspetiva, os atributos da cólera e demais vicissitudes.
O diálogo entre Séneca e Montaigne possui uma série de modos complexos. Ambos se aproximam, na medida exata em que se distanciam. Irredutíveis. A música de fundo empresta-lhes um tom familiar, mas o canto de cada qual possui um timbre inconfundível.
Séneca me acompanhou na juventude, quando mal sabia modular as intensidades que me feriam. E segue vivo para mim: jamais abandonei as Cartas a Lucílio, manancial de beleza viril e mansidão.
Nos dias que correm a voz de Séneca é um antídoto eficaz contra a ignorância e a barbárie. O tratado da ira abre espaço para uma refundação, desde o famoso adágio, de que o bem e o belo se convertem. E que sua alta condição ilumine as dissonâncias da ordem mundial.
Diálogos improváveis
Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 15/07/2020