Nos anos 50, o professor de Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito do Recife era Samuel MacDowell, que estudara em Oxford, onde, devido à sua compleição morena, representou Otelo no espetáculo montado pelos colegas. Isolado na casa-grande do engenho, ele dedicou-se a traduzir os sonetos de Shakespeare. Como costumava narrar nas mesas boêmias dos bares do Recife, eis que, em certa noite em que trabalhava em seu gabinete, apareceu-lhe o próprio Shakespeare, envolto numa auréola. Deu-se, então, o seguinte diálogo:
MacDowell: —Will, estou a te traduzir.
Shakespeare apanhou, então, uma das folhas que se achavam sobre a escrivaninha, leu-a demoradamente, para finalmente sentenciar: “Samuah, Samuah, se um dia eu tivesse de me exprimir em tão rude idioma, o faria precisamente assim”. Dito o quê, Shakespeare desapareceu na auréola que o trouxera até Pernambuco.
Nunca me intrigou o aparecimento de Shakespeare, porque é conhecida a sua predileção pelos fantasmas e nada impedia que se transformasse em um deles e cruzasse o Atlântico. Intrigavam-me, contudo, primeiro, a intimidade com que os interlocutores se tratavam, e também o fato de Shakespeare conhecer a língua portuguesa. Tanto que se manifestara enfaticamente sobre a qualidade do trabalho de MacDowell.