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O que somos afinal

 

Para comemorar os 70 anos do estádio do Maracanã, a seção de esportes do GLOBO pediu a 70 especialistas de jornal, rádio e televisão que escolhessem os 70 maiores jogos ali realizados. O ranking foi formado e publicado na semana passada. Segundo está no jornal, o primeiro lugar ficou, por decisão unânime dos jurados, com o Maracanazo, aquele jogo entre Brasil e Uruguai, na decisão da Copa do Mundo de 1950. A equipe brasileira vinha de grandes exibições e goleadas contra o México, a Suécia e a Espanha, enquanto os uruguaios chegavam à final às duras penas. O Brasil era o franco favorito, seus jogadores chegaram a tirar fotos com as faixas de campeão e foram previamente tratados como tal pelas autoridades esportivas e políticas.

Quando nosso time entrou em campo, mais de 200 mil torcedores, representando a população brasileira que estava ligada num aparelho de rádio, se preparando para a festa, o saudaram como inevitável campeão. Aos 10 anos de idade, agarrado ao grande rádio da sala, gritei o nome dos jogadores, como se estivesse no Maracanã.

O Brasil abriu o placar, no início do segundo tempo, estimulando ainda mais as comemorações. Mas a equipe não estava satisfeita com o resultado, precisava repetir o das partidas anteriores, que era o que se esperava dela. Com paciência e sabedoria, os uruguaios perceberam a ansiedade narcísica do adversário e, comandados pelos gritos de Obdulio Varela, um meio de campo parrudão, acabaram virando o jogo. Com 2 a 1 no placar, o Uruguai se tornava campeão do mundo, numa Copa em que só tinha dado Brasil. Apesar de explicável, aquele era um resultado estúpido e injusto, como só o futebol, de vez em quando, é capaz de produzir.

Durante muitos anos, fizemos dessa sombria derrota um exemplo do caráter nacional. Aprendemos a nos conformar com ela, como nos conformávamos com o que, no fundo, os brasileiros deviam ser: um povo que perdia sempre, porque não sabia vencer, não havia nascido para vencer. Apesar do tricampeonato de 1958, 1962 e 1970 (nesse último, derrotamos o Uruguai por 3 a 1), o que importava mesmo era a final de 1950 e, essa, nós nunca mais ganharíamos. O sucesso universal de Pelé era um acontecimento que não nos dizia respeito, quantas vezes o desrespeitamos! Garrincha, sim, podia nos interessar, como exemplo de um gênio bêbado, que morreu cedo e pobre. Um infeliz como todos nós brasileiros. Foi pensando nas consequências de 1950 que Nelson Rodrigues inventou a história do brasileiro que se julga e se comporta como um vira-latas.

Aí chegam esses especialistas e, quando têm que celebrar o maior estádio de futebol do mundo, uma espécie de Piazza di San Pietro do esporte, um Taj Mahal do balão de couro, a Casa Branca do gol, onde grandes craques, para delírio das torcidas, produziram incontáveis e inesquecíveis instantes de alegria e felicidade, pois esses especialistas escolhem, por unanimidade, como o melhor jogo de todos os jogos vistos no nosso Maracanã, exatamente aquele em que mais perdemos e do qual guardamos um justo rancor que já nos fez tanto mal e, quem sabe, vai continuar a fazer se a gente bobear.

E havia, para lembrar, tantos outros jogos que não temos como esquecer. Como o do gol de barriga de Renato, no finzinho do tempo regulamentar, em 1995. Ou o Santos e Milan de 1963. Ou o Brasil e Paraguai de 1969, com as feras do Saldanha que depois, com Zagalo, seriam tricampeãs. Ou o do gol de Maurício contra o Flamengo, dando o campeonato de 1989 ao Botafogo, depois de mais de 20 anos sem títulos (fazendo minha filha de 3 anos pensar que o pai dela tinha ficado maluco). Enfim, há tanto o que celebrar, por que só gostamos de sofrer?

Essa escolha do melhor jogo no Maracanã está se parecendo com o que fizemos do Brasil em 2018. A maioria dos eleitores não estava entusiasmada com as alternativas eleitorais e podia ter razão. Uns 35% deles votaram no vencedor, porque o resto votou em outros candidatos ou não foi votar. Elegemos quem não sabia nos governar e, mesmo muitos que votaram nele, não estão satisfeitos com o que anda acontecendo. Nem piedade dos que estão morrendo do vírus ele parece ter. Já são mais de um milhão de infectados e mais de 50 mil mortos, e a gente não vê o cara tentando consolar uma família, indo a um hospital confortar os doentes, se comover ou, pelo menos, se interessar pela tragédia que caiu sobre o país que ele governa. O pior para ele é que, no futuro, quando forem explicar o que foi a Covid-19, como hoje discutimos a Gripe Espanhola ou a Peste Negra, o principal responsável pelos acontecimentos no país será necessariamente o presidente de então, que falava em gripezinha ou chuvinha: “Você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”.

Como estava na coluna de Carlos Eduardo Mansur, enquanto o Flamengo goleava o Bangu, na quinta feira passada, e 22 homens corriam no gramado cumprindo seu ofício, outros 26 seres humanos, a poucos metros dali, eram tratados da Covid-19 no hospital de campanha montado no Maracanã. “O futebol nunca refletiu tanto a nossa sociedade”, escreveu Mansur. Será que o Brasil está condenado a ser isso e somos nós mesmos que o depreciamos sempre?

O Globo, 22/06/2020