A compostura do presidente Bolsonaro não é nem de uma pessoa normal, quanto mais a de um presidente da República. Não falar sobre a nossa tragédia sanitária no dia em que chegamos a um morto por minuto, mesmo ao inaugurar um hospital de campanha construído para enfrentar a pandemia, é sinal de desumanidade incomparável. Tropeçou física e metaforicamente nos seus próprios erros.
O absurdo é que o governo não esteja totalmente mobilizado para essa tragédia nacional. E não temos nem ministro da Saúde. O próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, espelho para Bolsonaro, criticou a maneira como o Brasil está enfrentando a pandemia da Covid-19, dando como exemplo do que não deve ser feito a Suécia, elogiada por Bolsonaro, e o nosso país.
Trump fez uma conta aterradora. Disse que se os Estados Unidos tivessem agido como o Brasil, milhões de americanos teriam já morrido. Isso num país em que mais de cem mil pessoas já morreram, mais do que em todas as guerras em que os Estados Unidos se meteram depois da Segunda Guerra Mundial.
Esse número macabro também nos assombra. Caminhamos para ter mais mortes do que na Guerra do Paraguai ou na Gripe Espanhola. E estamos disputando uma corrida insana para superarmos os Estados Unidos em número de mortos.
Em vez de preocupar-se com a realidade atual, Bolsonaro tenta armar uma realidade futura que ele não sabe nem mesmo se poderá desfrutar. Refiro-me à sua obsessão pela reeleição em 2022, que ele acredita estar pavimentando com a retomada da economia, como se por si só ela representasse bons ventos adiante.
Esquece-se de que o número crescente de mortes pela Covid-19 será um árduo fardo para carregar nas costas até as eleições, se é que seu mandato durará até lá. A questão do impeachment hoje parece mais de quando, e não de se, como se refere à ruptura democrática seu filho 03.
O que os Bolsonaro querem é preparar o ambiente para que, caso amanhã as manifestações contra o governo sejam muito grandes, possam reprimi-las com a Força Nacional, que nunca foi chamada para reprimir, ou ao menos velar pela segurança das marchas a favor de Bolsonaro, carregadas de cartazes incitando o ódio e o fechamento do Congresso e do Supremo, excessos da liberdade de expressão que não estão protegidas pela lei.
Finge estar preocupado com o embate entre prós e contras ele, mas xingar os contrários de terroristas e vândalos é tentativa de criar ambiente que permita acionar a Força Nacional e dizer que está sendo atacado. É uma atitude política óbvia. Tomara que domingo seja tudo calmo.
Algumas lideranças que estão se manifestando publicamente contra o governo sugerem evitar manifestações neste momento, e esse apelo — sensato — deve diminuir o número de pessoas nas ruas. Pessoalmente, prefiro que não houvesse nada por enquanto, e que as manifestações começassem quando voltarmos à normalidade, com o Congresso funcionando.
Mas outros acham que não se pode deixar Bolsonaro avançar, e é preciso ir logo para a rua. Há especulações de que o que Bolsonaro quer mesmo é encontrar um atalho no seu caminho para a reeleição para ganhar poderes num estado de sítio provocado por distúrbios nas ruas.
A mesma tática foi tentada pela ex-presidente Dilma Rousseff, que chegou a consultar os ministros militares sobre a decretação de um estado de sítio antes da votação do impechament que acabou tirando-a do governo. Os ministros deixaram claro que não apoiariam tal decisão, e o golpe teve que ser abortado.
Esperemos que esses mesmos militares que continuam a liderar as Forças Armadas, uns ainda na ativa, outros na reserva mas em postos importantes dentro do governo Bolsonaro, sejam coerentes com atitudes do passado e reajam à tentativa de controlar os protestos oposicionistas através de golpes de força.