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Delicadeza e doçura

 

Seja de que natureza for, o racismo será sempre um horror. Da morte de um negro sufocado por um policial branco, às piadas contra chineses de um ministro da Educação, tudo que for negação agressiva da diferença natural entre seres humanos deve ser condenado. Mas o racismo não se manifesta do mesmo modo, entre os diferentes grupos humanos. É preciso consultar essas diferenças, cada vez que devemos reagir a essa depravação moral. Como agora, com o assassinato brutal de George Floyd.

No Brasil, onde o racismo se instalou desde que nossos “descobridores” chegaram às nossas praias em 1500, ele foi da violência selvagem da escravidão secular à malemolência de descendentes de senhores de escravos, que elegeram aspectos da cultura afro-brasileira como capazes de representar a nação. Hoje, os grandes clássicos de futebol são assistidos por uma torcida bastante especial, criada pela reforma que diminuiu e gentrificou o Maracanã, evitando miseráveis gerais. Assim como o samba acabou virando um ritmo de marcha militar, desfilando no Sambódromo de ingresso proibitivo. Entre uma coisa e outra, adotamos a “política do embranquecimento”, inventada por intelectuais na virada do século XIX para o XX, que, sejamos justos, não prescrevia a eliminação de uma raça, mas a sua transformação em outra, uma miscigenação que só existiria no Brasil.

Enquanto nossa fina princesa anunciava a Abolição em praça pública, cercada por nobres e plebeus, na América do Norte uma sangrenta guerra, entre os estados do Sul e do Norte, tinha sido necessária para acabar formalmente com a escravidão. Para as duas Américas, valia a precisa previsão histórica de Joaquim Nabuco: mesmo proclamada a libertação, a escravidão ainda permaneceria uma característica de nosso comportamento. Uma cultura que, para ser eliminada, gestos generosos do poder não seriam suficientes. Como não seria suficiente nosso mito de doçura e delicadeza.

Depois do fim formal da escravidão, os ex-escravos americanos se tornaram um problema para os brancos de origem europeia, a negação de tudo o que pretendiam como nação. No Brasil, ao contrário, tratamos de espalhar a lorota da mestiçagem, a mentira das boas relações igualitárias. Enquanto lá os negros iam se tornando adversários do poder, aqui eram obrigados a pensar que faziam parte da sociedade, sem restrições. Graças à energia do capitalismo americano, então emergente, lá os negros podiam ser heróis individuais, como o foram, de Jesse Owens a Michael Jackson, de Martin Luther King a Barack Obama. No Brasil, Pelé foi sempre o solitário exemplo de nosso sucesso no assunto. Aqui, preferimos tratar o gesto injusto contra um negro, não como fruto de uma discriminação; mas como reação ao comportamento inadequado do indivíduo, independente da cor de sua pele.

É claro que o crime de Minneapolis nos leva a uma justa e total solidariedade com sua vítima, George Floyd. Mas, naquela semana de sua morte estúpida, a polícia carioca havia liquidado, como sempre faz, dezenas de cidadãos negros, inclusive crianças, apenas por estarem onde não deviam estar. A vítima mais recente fora o menino negro João Pedro, de 14 anos, morto na casa de um vizinho onde brincava, com quatro tiros dados comprovadamente pelas costas. Pelas costas, como em geral acertamos nosso racismo bem peculiar.

A Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo, está ameaçada de fechar, vítima do desinteresse do governo federal, do qual depende. Segundo Mônica Bergamo, da “Folha de S.Paulo”, as autoridades afirmam que vão levar meses para levantar os recursos para mantê-la e, assim, os filmes ali depositados apodrecerão. Ora, o governo federal acaba de repassar cerca de 85 milhões de reais do Bolsa Família para a Secom, a fim de alimentar sua propaganda. A Cinemateca precisa de muito menos, e o governo precisa cumprir com os encargos da União. Ou teremos outra tragédia por incúria, como a que destruiu o Museu Nacional.

Os amigos da Cinemateca costumam dizer que ela foi infectada por uma Covid-19 e está na UTI. É preciso providenciar um respirador, como a prorrogação, por uns meses, do contrato com a Acerp, responsável por sua administração. Eles estão liderando um crowdfunding para pagar aos funcionários que não receberam seus salários, nesse 2020. A Cinemateca Brasileira é uma das mais respeitadas do mundo, basta ver a quantidade e a importância das instituições internacionais que acabam de assinar manifesto a seu favor. Ela é uma memória do país, com imagens e sons registrados para que saibamos como ele é e como queremos que seja. Um museu nacional do olhar.

O Globo, 08/06/2020