Sempre falta dinheiro para a cultura no Brasil, sempre faltou. Pouca gente desvinculada de sua militância acredita mesmo que a cultura seja formadora da nação e de seu espírito estrutural. Ou, ao menos, um elemento constitutivo de sua formação. Para grande parte dos brasileiros, a cultura é atividade de vagabundo que, não sabendo fazer mais nada, explora os recursos do Estado para essa espécie de férias eternas e remuneradas.
O sentimento se agrava, quando se lê no jornal que o diretor-presidente da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, iria, com mais alguns dirigentes da instituição, para o Festival de Cannes, às custas da agência. Enquanto isso, os produtores que fabricam os filmes que, graça à sua qualidade, são selecionados por Cannes (este ano são cinco), não têm recursos para continuar a produzir. Não faltaria dinheiro para a viagem à Côte d’Azur; mas falta dinheiro para a atividade que serve de pretexto à viagem. Ouso dizer que tanto melhor que eles acabaram não indo viajar. Ficaram por aqui e vão ter que encarar a crise.
O Brasil sempre foi assim. Talvez, em outros tempos, tenha sido até pior. Vivemos de ilusões, às vezes para nos aliviar, às vezes simplesmente por cinismo. Ilusões sobre nossa natureza, de onde viemos e para onde queremos ir. Nunca pensamos em para onde merecemos ir. Como não estamos jamais satisfeitos com o que de fato somos, inventamos disfarces nos quais nós mesmos acabamos por acreditar.
De vez em quando, aparece alguém que, por meio de diferentes ideias e instrumentos, se esforça para nos afastar dessas ilusões, para ver se melhoramos de caráter. Como Joaquim Nabuco, em seu tempo e até hoje. Ou Machado de Assis, um pessimista do bem. Ou ainda Glauber Rocha, herdeiro assimétrico de Castro Alves e Euclides da Cunha, a nos jogar na cara nossa violência e nossa crueldade social.
Aparecem também outros criadores que as reforçam ou criam novas ilusões para que existamos, como se precisássemos delas para existir. Talvez até precisemos mesmo, em certas situações limites e míticas. Mas para que o sol da verdade nos cubra de luz nos momentos em que sofremos tanto, não podemos buscar a razão de sermos no texto conciliador do grande Gilberto Freyre, no elogio ingênuo do gênio Humberto Mauro, nos inesquecíveis sambas-enredo de nossas maravilhosas escolas.
Entre esse dois exageros, surge, muito de vez em quando, um brasileiro que se coloca a igual distância entre eles, para evitar tanto engano. São, em geral, pessoas que desejam resolver conflitos e confrontos fraternos de um modo mais do que pacífico. De um modo afetuoso. Não se trata daquilo que o sociólogo Zander Navarro chamou de complacência nacional, uma subordinação acrítica ao fato e à sua interpretação, o que dificulta as possibilidades de transformação social. Trata-se apenas de um raro método político de fazer a história avançar.
Um deles, único militar ligado ao governo que conheci pessoalmente, é o general da reserva Eduardo Villas Bôas. Vi-o apenas uma vez, numa manhã em Brasília, a conversar sobre a atividade cultural no país e, mais particularmente, sobre a situação do cinema brasileiro.
Não ouvi do general nada malicioso ou agressivo sobre qualquer das pessoas citadas durante nossa conversa, gente de diferentes lados do espectro político e ideológico do país. Pelo que ouvi, minha impressão foi a de que sua obsessão era a da construção do Brasil, um país que não estava só em sua cabeça e em seus sonhos, mas que devia estar sobretudo nos concretos interesses dos brasileiros. Na minha opinião, o que o general Villas Bôas procurava inquieto era justamente esses interesses, quais seriam e como conciliá-los numa democracia.
Numa síntese, o ex-ministro Gustavo Bebianno disse a uma colunista que Villas Bôas era “um exemplo de força, bravura, inteligência, serenidade e resiliência”. E acrescentou que ele não podia ser alvo de ataques covardes e infames, “promovidos por teóricos remotos”. Também acho.
No caso, o “teórico remoto” é o tal Olavo de Carvalho, jocoso astrólogo que se manifesta sempre por palavrões, uma modalidade de expressão mágica que visa a impedir a resposta do ofendido. Puro exibicionismo. O general Villas Bôas chamou-o de “Trotski de direita”, como Delfim Netto havia chamado tanta gente poderosa de “direita incultural”. Ele não gostou. E aí replicou violenta e deseducadamente, contra um homem que, tenho a impressão, tenta suavemente ouvir e entender quem não pensa como ele.
Ao longo dos séculos, grandes estudiosos de todo o mundo se obrigaram a viagens extensas ao Brasil, para refletir e escrever sobre nós, a partir do que aqui via. O nosso “pensador”, morando há mais de 15 anos na Virgínia, Estados Unidos, de onde nunca sai, se pretende um preciso decifrador do Brasil, tendo o direito de dizer quem presta e quem não presta por aqui. Ou seja, o mínimo que cada um de nós precisa saber sobre cada um de nós, para não ser um idiota. Como quem, por exemplo?