Mesmo que o amemos com paixão, o Brasil é um país pouco fácil de se elogiar. Os tolos sempre acreditaram no marketing que nos vende como um paraíso tropical, onde tudo é belo e prazeroso, onde não há conflitos a encarar. Já os mais espertos perceberam a falácia do país da cordialidade e do risonho rosto ao sol, e protestam contra nossas dificuldades, das mais fundamentais às mais prosaicas, para o exercício do amor. O mestre Antônio Vieira, por exemplo, reclamava de nossos mosquitos que não paravam de picá-lo; assim como dom João VI ordenou a mudança para o Rio de Janeiro, porque não aguentava mais o mau cheiro nas ruas da Bahia.
Hoje, parte de nós, ao comentar o que somos, exerce uma lógica peculiar e muito original do que podemos chamar de “cultura de botequim”, que hoje domina a cultura brasileira em geral, depois de longo silêncio cuidadoso de desvalorização e de vergonha do que podíamos ser. Ou vir a ser.
A cultura de botequim se manifesta através de outra especialidade nacional, a “conversa de botequim”, à qual se dedicaram, com diferentes posturas e valores, poetas, romancistas e pensadores sobretudo cariocas. Entre eles, Noel Rosa pode ser considerado o pai da expressão. Grandes artistas como João do Rio, Marques Rebelo ou Nelson Rodrigues, entre tantos outros, nos fizeram conhecer bem esse mundo, em outros momentos do país. Pois, como toda criação dessa natureza, a cultura de botequim se transforma no tempo, conforme o que acontece e a influencia do lado de fora do botequim.
A conversa de botequim se caracteriza pela irresponsabilidade tóxica de seus praticantes, pela impertinência com que tratam assuntos pertinentes. No botequim, não se pensa duas vezes ao preferir a piada à verdade sem graça. Ninguém vacila em inventar um argumento falso para justificar o que pretende afirmar. Não se dá crédito ao que não serve para impor uma razão pouco razoável. Ganhar a discussão é a prioridade, mesmo que não se saiba o que está certo ou errado, que não se dê muita importância à vitória. Mesmo que estejamos a espremer uma barata na sola do sapato, faremos isso porque é assim que se faz no mundo real dos heróis. Com um sorriso nos lábios, ainda que disfarçadamente triste.
No botequim, o valor de quem fala mais alto, de preferência aos gritos, será sempre superior ao de quem é capaz de raciocinar sem muito escândalo. No botequim, o que vale mesmo é o tapa lerdo nas costas e o sucesso junto a um público que busca diversão na absoluta normalidade. O botequim é, antes de tudo, o lugar de seres normais; dos que serão sempre de um só jeito, os que não querem surpreender e não se surpreenderão. O lugar da paz conquistada pela ignorância. O julgamento de nós mesmos é o da autodesvalorização, ainda que disfarçada pelo galicismo literário a nos garantir que essa é a arma mais poderosa contra quem não acredita em nós. Há sempre uma versão pejorativa para cada virtude que por ventura se descubra em nós.
Hoje, mais do que nunca, o cara no botequim é um machista que coça o saco e cospe no chão, a cultivar linguagem vagabunda e misógina como suprema demonstração de poder e grandeza. Ele não admite mulheres no botequim, porque elas só existem para serem usadas e injuriadas de diferentes modos. A mulher do outro será sempre mais passada, além de suspeita; enquanto a nossa, uma bênção de perfeição e virtude. A conversa de botequim não admite autocrítica, nem revisão da qualidade de matrimônios desgastados.
A cultura de botequim é o clímax da masculinidade tóxica, o supremo instante de humilhação do outro. O cara no botequim é capaz de considerar a morte de uma esposa querida como a libertação do viúvo para a gandaia. A doença fatal não passa de um pretexto para a traição (“sempre desconfiei desse aneurisma, ele nunca me cheirou bem”). E se a vítima chorar no enterro, o botequim dirá que é apenas mimimi, puro disfarce. O importante é uma fodinha por semana; e, se a mulher do outro for menos apetitosa ou sei lá o quê, dizer simplesmente: “Não humilha cara, kkkkkk”. O botequim pensará que vamos aprender e nos acostumar ao sofrimento.