O Festival de Cinema de Berlim é um dos três maiores certames cinematográficos do mundo. No seu nível de grandeza, só dá para comparar Berlim com Cannes e Veneza. Mas, diferente desses dois, Berlim se torna, cada vez mais, um festival eminentemente político, dando preferência aos filmes que revelam o que está acontecendo nos países de onde eles vêm. Em Berlim, os espectadores se aproximam mais profundamente dos países de onde os filmes vêm.
É nesse rigor político de Berlim que o cinema brasileiro vem se tornando uma presença indispensável. De tal modo que, no festival deste ano, que começou sexta-feira passada, temos nada menos que 19 filmes brasileiros selecionados, exibidos em diferentes sessões, inclusive na competição oficial. Na disputa pelo Urso de Ouro, contamos com “Todos os mortos", filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra, ambos de nossa nova geração de cineastas originais. Esses 19 títulos são uma seleção de filmes que representam a diversidade de nosso cinema. Ou, dito de outro modo, a diversidade da cultura brasileira, uma produção múltipla de tudo o que somos e que podemos celebrar.
Poucos países, no mundo de hoje, podem ostentar essa qualidade múltipla e diversificada de sua cultura, essa cultura faiscante visível através de seu cinema, independente de etnias, regiões, gerações, preferências políticas, opções estéticas e tudo mais. O cinema brasileiro é hoje não só uma expressão do que somos de fato, como também uma projeção utópica de tudo que gostaríamos de ser. Ou, quem sabe, planejamos ser.
Embora tenhamos um cinema com essa rara representatividade, nem por isso nosso poder público se interessa por sua produção, difusão e promoção. Nenhum país do mundo, onde exista uma indústria cinematográfica, deixa de apoiar economicamente seus filmes. Da Coreia do Sul, de onde veio o ganhador do Oscar “Parasita”, à França, onde existem regras para que a própria população sustente seu cinema através de impostos sobre a bilheteria; das modestas indústrias cinematográficas do Mali ou da Romênia, da Guatemala ou de Cingapura, ao poderoso gigante americano de Hollywood, da pátria do capitalismo liberal que são os Estados Unidos; das cinematografias médias da América Latina, como México e Argentina, àquelas da Europa, como Alemanha e Espanha; em nenhum país, de qualquer continente, o Estado deixa de participar política e economicamente de sua indústria de cinema.
O cinema é o maior instrumento de difusão de um modo de viver nacional, na oferta do que cada país tem de específico, no soft power hoje expandido além das salas de projeção, para a televisão, o streaming e qualquer outro avanço digital que a humanidade esteja consumindo e ainda consumirá. Para qualquer nação do mundo, a seleção de 19 filmes num festival como o de Berlim seria, além de um reconhecimento de qualidade, uma oportunidade extraordinária de divulgação do que somos e fazemos. Uma oportunidade rara de nos destacarmos como criadores de uma indústria cultural que não apenas serve a nós mesmos, como põe ao alcance dos outros aquilo de que somos capazes.
Mas o desinteresse de nosso poder público pelos filmes que fazemos, o desejo doentio de orientar nossa produção cultural, impor a única ideologia que lhe interessa, tem feito nosso governo, um inimigo da inteligência, perder todas as oportunidades de valorizar o Brasil pelo mundo afora. No passado, a Ancine (Agência Nacional de Cinema) sempre colaborou com a difusão do cinema brasileiro no exterior, apoiando de algum modo os filmes selecionados para festivais internacionais, ou colaborando com seu lançamento comercial fora do país. Essa política fez do cinema brasileiro, sobretudo o mais recente, um elemento de prestígio para o próprio festival para o qual somos selecionados. E onde somos fartamente premiados, como aconteceu recentemente com “Bacurau” e “A vida invisível”.
Com Bolsonaro e seus ministros, o Fundo Nacional de Cultura teve, em 2019, o menor valor em dez anos. O fomento direto do governo, que já foi de 344 milhões de reais, não chegou a um milhão no ano passado. Não é de se estranhar, portanto, que a Ancine e o governo brasileiro não se interessem por nossos 19 filmes em Berlim, realizados por cineastas jovens, vindos de todas as regiões do país. Nosso prestígio internacional foi ignorado, como se repudiássemos o reconhecimento de nossa cultura e de nosso cinema. O presidente vai continuar a falar de filmes que nunca assistiu, como foi o caso de “Bruna Surfistinha”, reproduzindo conceitos de quem não sabe a importância do cinema brasileiro. Aqui e lá fora.