Tem dias que a gente acorda meio molenga, dá uma olhada nas notícias on-line, lê umas coisas nos jornais e fica tentando descobrir em que ano estamos. Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos, que, durante uns segundos, a gente pensa que segue amarrado a um sonho que não termina. Sonho, não. Pesadelo.
Corre pelo mundo uma pandemia danada, matando gente em tudo que é continente. Na China, onde o vírus primeiro apareceu, parece que está tudo sob controle. O que não acontece ainda na Europa, que está quase chegando lá. No Sudeste Asiático e na Nova Zelândia estão os heróis da humanidade, intrépidos vencedores do vírus diabólico. Ele é o único inimigo que devíamos estar enfrentando com empenho, todos juntos, unidos e inseparáveis, porque pode acabar com todos nós, sejamos de que partido formos. De direita, de esquerda ou de todas as tendências de centro. O vírus só reina onde não se tem nenhuma consciência política disso, ali está a crise aguda.
Na América do Norte, um presidente insensível, que só pensa na reeleição cada vez mais difícil, odiado por todo mundo que ainda crê na viabilidade do amor, resume sua participação na guerra contra o vírus a crises de mau humor com os que censuram suas mentiras virtuais. E, na parte de baixo do continente, a América do Sul inteira fecha suas fronteiras para o perigo que vem do Brasil, isolado dali e do mundo. De nosso país, é que podem chegar os perigos da Covid-19 para nossos vizinhos de língua espanhola, que já tiveram muita inveja de nós e de nosso jeitinho esperto de viver. Hoje, eles nos evitam, como se fôssemos apenas amantes protetores e fiéis do vírus diabólico. A porta aberta para que eles invadam a vizinhança.
As notícias da manhã me levam a um mundo agendado por uma espécie de Ministério de Ontem, onde a política se repete numa evidente tentativa de golpe de Estado, comandado por gente doente e doida, desta vez eleita, mesmo que ocasionalmente e por engano. Eles não só não nos deixam pensar na luta contra o vírus, nos concentrarmos na defesa de todos nós contra a “gripezinha”, como agem contra toda tentativa de enfrentar o bichinho maldito. Como se o vírus não existisse e não estivesse atrás de nós, é tudo invenção desses comunistas. Enquanto isso, brincam de espingarda na gravata e gritos apopléticos de horror, cada vez que são apanhados em flagrante.
Como não temos partidos em que podemos confiar, com os quais nos identificamos e a eles seguimos, cada vez que temos uma eleição decisiva ficamos diante de escolhas que não sabemos por onde analisar. No meio do caminho, somos muitas vezes obrigados a topar a violência de um impeachment, afastando do governo, por meio de manobras de salão, quem foi eleito pela simpatia espontânea da população. Nas duas últimas vezes em que isso aconteceu na política brasileira, o eleitor já não tinha muita confiança em ter acertado em sua escolha. E isso foi o que nos salvou de uma crise mais longa e mais séria.
O capitão foi eleito como uma reação da população aos 15 anos do oposto no poder, por causa de grave decepção popular. O número de eleitores arrependidos hoje é imenso. Arrependidos, não. Eleitores que simplesmente deploram não lhes ter sido dada opção mais sã e mais sólida, como alternativa. O primeiro sinal que tive do resultado futuro da eleição de 2018 foi-me dado pelos motoristas de táxi. Todos iam votar no capitão. Agora, antes da quarentena, todos afirmavam sua decepção com o voto que deram. Mas sempre acrescentando a pergunta melancólica: mas eu ia votar em quem?
A nós, que prestamos mais atenção, sempre nos ocorreu o que podia acontecer. Ou ninguém se lembra que, graças aos apresentadores do “Jornal Nacional”, os espectadores não viram as páginas abertas da “cartilha sexual” que o Ministério da Educação do governo anterior havia preparado para as crianças, onde a chupeta tinha uma forma de pênis? Foi o casal de jornalistas que não deixou que o então candidato mostrasse a cartilha pervertida, típico objeto de fake news, para as câmeras.
Em grande parte, quem ganhou a eleição graças a esses disparates receia que eles sejam agora criminalizados.
Insisto que, se o cara foi eleito democraticamente, mesmo que por engano (a democracia, às vezes, também se engana), temos que respeitar esse resultado, sempre atentos ao que ele pode aprontar. Serão mais dois anos e meio de desacertos, sustos e ameaças. A não ser que ele pise na bola mais gravemente, o que se há de fazer?
O Globo, 01/06/2020