Entre as várias exposições que Paris apresenta neste outono europeu, deste 1991 destaca-se a do Grand Palais, pela importância histórica e o resgate de um artista considerado maldito na sua época: Gericault. A mostra faz um amplo retrospecto dos trabalhos desse pintor de cavalos, de animais a saltar dos quadros para agarrar-se à realidade do dia que passa e que morreu jovem, aos 34 anos, por trágica coincidência vítima da queda de um cavalo.
Gericault deixou em sua obra a marca da transição para o romantismo e pode ser considerado o primeiro pintor francês moderno do século XX. Seu contemporâneo, admirador e epígono, Delacroix, avançou na transição do neoclassicismo exaurido por David e ocupou o lugar que seria de Gericault, se vivesse mais, por seu talento, gênio e consciência social, demonstrada nas últimas produções. A morte prematura o condenou á situação de "desconhecido célebre", afastado da companhia dos maiores pelos contemporâneos que viam em sua pintura o germe da rebeldia mesclado às cores de quem contempla a realidade com olhos do inconformismo.
A condenação ao ostracismo não foi suficiente para o olvido do seu trabalho Le Radeau de la Méduse, quadro hoje célebre. Na tradução literal seeria a balsa, mas pelos que se vê, é um grande jangada improvisada pelos náufragos. Não foi incluído na exposição do Grand Palais por encontrar-se no Louvre e por ser muito grande e de difícil remoção. Mas quem paga os 37 francos para ver a obra de Gericault no Grand Palais, tem o direito de entrar uma vez no Louvre, onde pode contemplar a Jangada da Medusa - obra apresentada no salão de 1819, para escândalo dos neo-classicistas. Trata-se de enorme quadro ligado à história da França pós-napoleôncia: por sua intensidade transmite o drama humano em face da morte e pode ser transportado para qualquer época da história moderna e até mesmo para o Brasil, de 1991.
Jean Louis André Théodore Gericault nasceu em Rouen em setembro de 1791 filho de família abastada que em 1795 se transfere para Paris. Na França revolucionária, onde Jacques Louis David fascina os parisienses com sua arte neoclássica, Gericault começa a trabalhar e revela mão prodigiosa para o desenho. Estuda com Pierre Bouillon, maníaco pelos cânones da antigüidade e mais tarde com Carle Vernet. Mas seu verdadeiro pai espiritual será Antoine-Jean Gros que, patrocinado por David, encontrou seu caminho através das cores de Rubens e tornou-se o único pintor genial dos tempos de Napoleão. Gros revela a Gericault a poética do movimento, as cores, o cavalo e sua arquitetura muscular, o oriente, o universo e o drama - o romantismo e a modernidade, enfim.
O jovem Gericault percorre um longo caminho dos mestres franceses à Itália, onde copia os grandes artistas do renascimento. Suas cópias têm o toque pessoal do artista que logo encontra seu próprio estilo. A retrospectiva de sua obra, duzentos anos depois do nascimento, não deixa dúvidas: ele foi o melhor dos seus contemporâneos, intuiu as grandes linhas e teria sido o maior pintor do romantismo francês, lugar ocupado por Delacroix, se Gericault tivesse vivido, tanto quanto o autor de Les femmes de Alger. A importância dele na pintura francesa pode ser avaliada por toda a sua obra, em exposição no Grand Palais, mas especialmente pelo Le Radeau de la Meduse, no Louvre.
A Medusa, fragata da marinha francesa, partiu de Rochefort em junho de 1816, pleno reinado de Luis XVIII, para colonizar o Senegal, na África. O comando da Medusa foi entregue a Hughes Durou Chaumerey, velho oficial da Marinha que fugira da França na época da revolução e voltara com a queda de Napoleão, um emigré, portanto. Antes de chegar em águas africanas, a fragata naufraga por imperícia do comandante. Com os restos do navio os náufragos conseguem construir ampla jangada, onde se amontoam cento e cinqüenta homens, na maioria militares. E assim começa a odisséia que dura treze dias, onde tudo acontece, até o canibalismo, quando acabam os alimentos. Salvos do naufrágio quando a jangada encontra um barco salvador. só restam dez homens vivos, entre os quais Chaumerey, mais tarde julgado em Rochefort e condenado por seus pares. O processo de sua incompetência torna-se o processo da volta da monarquia, dos "legitimistas'' e de todos que insistem na reinstalação do ancien regime. O caso mobiliza a oposição liberal e em fins de 1817 publica-se o relato de tudo o que ocorreu com os sobreviventes do naufrágio - e é neste relato que Gericault se inspira para realizar sua obra.
O artista começa a trabalhar em 1818, mas só apresenta a enorme tela no salão de 1819, para escândalo dos críticos acostumados à estética neoclássica de David. Os ultras do conservadorismo artístico não escondem seu horror diante de um conjunto de corpos entre cadáveres, onde o realismo fúnebre não tem qualquer relação com o idealismo clássico. O horror trágico da obra evidencia-se no jogo de sombra e luz onde os corpos se misturam na ânsia de escapar com vida naquela jangada, tábua de salvação e inferno ao mesmo tempo. Gericault escolheu sua perspectiva da altura em que os sobreviventes avistam o veleiro salvador. Os sobreviventes mais fortes precipitam-se para a proa da jangada com expressões de eséerança. Um velho, no canto esquerdo do quadro, perdeu até o desejo de se salvar, e deixa tombar a mão sobre o corpo do filho num gesto de proteção. Os náufragos já não têm forças para despojar dos cadáveres: um morto é arrastado pelas vagas. Um quadro de horror, enfim, que por sua força pictórica, seu realismo e a intencionalidade imanente - verdadeiro libelo imagístico contra a incompetência do Rei, do governo e dos emigrés - provocou críticas ásperas dos círculos oficiais e dos que sempre estão com os poderosos da hora.
Os conservadores atacaram a Jangada da Medusa: no entanto, do ponto de vista técnico e da realização a tela não se afasta do cânone tradicional, como observa Everard Upjohn na História Mundial da Arte, volume IV. Sua intenção é que escandalizou. A cor predominante é o acastanhado: as grandes dimensões da obra estão em conformidade com as normas da época. A importância atribuída ao desenho e ao gosto acadêmico pelo corpo humano, alguns nus, continuam presentes, apesar do contraste entre a luz e a sombra, mais dramático do que nos clássicos. Mas não é na Jangada da Medusa que Gericault afirma o espírito romântico da sua geração, mas sim nos retratos dos loucos que produz no fim da vida, embora é a Jangada, que desperta o rancor dos defensores da escola neoclássica e seus belos ideais.
A partir da Jangada, a consciência social de Gericault se aguça; infelizmente ele terá pouco tempo para realizar sua obra. Diante da incompreensão de seus compatriotas, leva a Jangada para Londres, onde pela primeira consegue alguma renda, com a exposição do quadro. Entra em contato com a pintura inglesa, que já se libertou dos dogmas acadêmicos dos grandes salões, e descobriu a Londres proletária, onde a revolução industrial começa a produzir os desempregados que perambulam pelas ruas, modelos para a litografia de Gericault. A consciência política do artista se radicaliza, à medida que se livra dos cânones acadêmicos e entra em contato com a vida real, fonte de sua inspiração. É dessa época o quadro mostrando o embarque de escravos sob o chicote dos capitães dos navios negreiros. A violência da cena, não comporta equívocos: a obra de protesto tem o valor de um manifesto. Em outros - há quadros só descobertos em 1865, nos quais Gericault retrata os velhos loucos de asilos, a melhor demonstração de uma arte que prenunciava, na nova forma de retratar os semblantes, as linhas mestras do romantismo. Mas Gericault não teve tempo: morre aos 34 anos, da queda de um cavalo.
Agora a França comemora o bicentenário do nascimento de um artista quase desconhecido do grande público cujo valor reintegra-se ao patrimônio dos grandes pintores do século XIX. Seu quadro mais importante, A Jangada da Medusa, não fala apenas do naufrágio de uma fragata ou da situação de um país, em determinado momento da sua história. Alcança a dimensão maior de obra eterna - basta observa-la com algum interesse, para ver nesse quadro de desespero e horror um pouco da nossa situação de náufragos da esperança, aqui no Brasil.
(Artigo publicado na Tribuna da Imprensa no ano de 1991 quando o arrependido Fernando Collor era presidente da República, mas que serve para o Brasil de hoje)