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Egas Muniz, confidente da noite

 

Na nossa profissão, Patrícia Campos Mello, enfrentamos multidões de energúmenos pela frente

Como era possível ser o símbolo da boêmia um homem que circulava todas as noites tomando apenas água mineral? Assim foi Egas Muniz que, incansável e a pé, ia da boate Oásis, ao Michel, Cave, Farney’s, Meninão, Lord, Excelsior, African, e ao restaurante cinco estrelas Baiuca, ao descolado Juão Sebastião Bar, ao Gigetto, Jogral, Stardust, Captain’s Bar, Champanhota, passando ainda pelo Chicote, Clubinho, Aquela Rosa Amarela, Ela, Cravo e Canela, e assim por diante, como se tivesse o dom da ubiquidade atribuído a Santo Antônio.

Egas terminava a noite extenuado? Que nada. Magro, corpo de bailarino, o que aliás era, e dos melhores, mudava da rumba para a conga ou o samba com a espantosa leveza de um Fred Astaire. Sem um pingo de álcool no corpo ainda tinha fôlego para ir ao Siroco, modesto bar da Nove de Julho que, das sete da manhã em diante, recolhia os que, fechados todos os bares, boates, “inferninhos”, botecos, recorriam à Branca, a russa dona do bar, que oferecia uma canja restauradora. Ali era a última esperança de se levar para a cama uma companhia.

Por que me ocorreu falar de Egas Muniz? Por um desses acertos da vida. Um dia, em 2007, a jovem jornalista Thais Matarazzo deixou na portaria da Academia Paulista de Letras uma carta, que respondi somente um ano depois, vejam só, comentando minha amizade e encontros com Egas Muniz. Era o homem mais conhecido da noite paulistana no final dos anos 1950, inícios de 1960. Jornalista, mantinha desde 1955 a coluna Giro Noturno, no Correio Paulistano, jornal tradicional, falecido. Muniz se relacionava com todo o mundo artístico, conhecia tudo e todos, a fauna notívaga inteira. Informava, não publicava fofocas ou fake news.

Thais acabou de escrever um livro, Giro Noturno: Fragmentos das Noites Paulistanas, que ela me entregou no ano passado no final de uma palestra no 2.º Livros na Fazenda, “jornadinha” literária que aconteceu na biblioteca da Secretaria da Fazenda, organizada por um idealista, o Jailson Lima Honorato (Ele acabou de ser removido do cargo, sabe-se lá por que). Naquele instante tudo se ligou, passado e presente, memória, afetos, fantasmas familiares. O livro de Thais nos conduz a lugares e tipos da noite, de uma noite completamente diferente, que marcou os últimos respiros de um tipo de vida romântico, sacana, inocente, criativo e sem a atual violência. 

É uma autopublicação que se liga a um livro clássico, o Nos Bares da Vida, de Lúcia Helena Gama, estudo sobre Produção cultural e Sociabilidade em São Paulo, 1940-1950, edição do Senac. E nos leva ainda ao volume Noites Paulistanas (Histórias e Revelações Musicais das Décadas de 50 e 60), de Helvio Borelli, Editora Arte e Ciência. Thais também acaba de lançar um livro sobre os Taxi Dancings, outra época da boemia paulistana.

A Secretária da Fazenda é edifício maciço, compacto, gigantesco. Foi a primeira vez que entrei naquele lugar solene, construído em 1951. O curioso é que no final dos anos 1950, todos nós, jornalistas, sabíamos da existência de um prédio vizinho no qual quatro mulheres bem-apessoadas, vestidas, educadas, discretas, de boa conversa, recebiam para um chá da tarde, seguido por conjunções carnais. Eram belles de jour, antes de Buñuel, Cléos das 5 às 7, antes de Agnès Varda. Quando pedíamos o endereço, elas explicavam: “É o prédio vizinho à Secretaria da Fazenda, não tem como errar”. O andar não me lembro. Com bondes e trânsito pesado era uma muvuca chegar à Rangel Pestana.

Egas Muniz. Pouco consumia, mas pagava a conta, tinha ética. Parece que o vi a vida inteira com o mesmo terno escuro e gravata. Formal, sorridente, informadíssimo. Arrancava um papel do bolso e anotava o necessário, não sei por que não usava uma cadernetinha.

Por esse livro curto passam de Edith Piaf a Dolores Duran, de Maysa a Claudete Soares, Dick Farney, Carminha Mascarenhas, Marcos Rey, Arley Pereira, Giba Um, Tito Madi, Carmélia Alves, Hebe Camargo, Peri Ribeiro, Nora Ney, Jorge Goulart, Isaura Garcia, Fred Feld, Johnny Alf, Lupicínio Rodrigues, Angela Maria, Helena de Lima, a “deusa das noites cariocas”, Fred Miller, Silvio Caldas, Inezita Barroso e centenas de estrelas. Temos em mãos um precioso who’s who para quem quer contar a história de uma época. Egas, morreu em 1970, aos 58 anos. “Foi o homem que a noite paulistana teve como seu fiel amigo e confidente”, escreveu Arley Pereira, um de meus mais fiéis companheiros na via-sacra noturna (eu tinha 22 anos) cuja atmosfera registrei em dois livros, Depois do Sol e Bebel Que a Cidade Comeu. Como jornalista, dou o serviço, porque não sei se o livro de Thais está em todas as livrarias. WhatsApp dela: (11) 99351- 6689. Para os nostálgicos, prato cheio. E quando virá, Thais, um livro sobre os “inferninhos?” Sobre o Snobar, o Clube de Paris, o La Licorne e o fabuloso Holliday e seu mito sensual, a Monica, pela qual o Tony Curtis se apaixonou quando passou por aqui?

O Estado de S. Paulo, 14/02/2020