Embora tenha se mostrado apático até ontem em relação à pandemia do Codiv-19 que está afetando o mundo, o governo Bolsonaro aprovou ainda em fevereiro deste ano uma ampla legislação que dá às autoridades de saúde uma gama variada de possibilidades jurídicas para enfrentar a crise.
Antecipando-se ao que viria, o governo mostrou capacidade de previsão. O preocupante é que nem o próprio presidente Bolsonaro, na sua fala de ontem em rede nacional, nem o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, se lembrem dessa lei, que foi aprovada em decisão rápida pelo Congresso.
O presidente Bolsonaro, que apareceu de máscara junto ao ministro da Saúde em sua live, não se referiu aos poderes que o governo tem para enfrentar a emergência de saúde pública, e o ministro Moro, entrevistado na Central Globonews, respondeu de maneira genérica às questões de segurança pública relacionadas à sua pasta.
Diversas decisões previstas na legislação dependem de aprovação dele e do ministro da Saúde. A Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, prevê um amplo arsenal de medidas administrativas para a guerra contra a disseminação do novo vírus, afinadas aos padrões determinados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Prevê até mesmo “restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos”, exatamente o que o presidente dos Estados Unidos fez ao proibir temporariamente a chegada de aviões vindos da Europa. Para essa medida, será preciso a autorização também do ministério da Justiça.
A lei prevê isolamento de pessoas já doentes ou contaminadas, a quarentena de gente com suspeita fundada de contaminação, exames, testes e vacinações compulsórios, como medidas de polícia administrativa, desde que determinadas ou autorizadas pelo Ministério da Saúde.
O conhecimento dessa nova legislação evitaria, por exemplo, que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, determinasse a internação compulsória para tratamento do novo coronavírus, medida já prevista, embora desaconselhada pelas autoridades, devido à escassa capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
A Lei estabelece que as medidas somente poderão ser determinadas com base “em evidências científicas” e em análises sobre informações estratégicas em saúde, assim mesmo limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
O constitucionalista Gustavo Binembojm, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que analisou a legislação, lembra milenar aforismo “salus populi suprema lex est” (“a saúde pública é a lei suprema”), que costuma ser invocado para justificar medidas excepcionais que precisam ser aplicadas pelo Estado em momentos de grave crise, para os quais o Direito não haja previsto as soluções adequadas.
Ele cita o jurista alemão Carl Schmitt, segundo quem as situações de “exceção” representam um problema insuperável à aspiração das democracias liberais de governar por meio do Estado de direito. Nas palavras de Schmitt, “soberano é aquele que decide na exceção.” Segundo essa análise, os sistemas jurídicos seriam incapazes de especificar tanto o conteúdo como o procedimento dos atos estatais suscetíveis de serem adotados em situações emergenciais, “pois um e outro poderiam ser facilmente descartados face à premência de ações imprevisíveis exigidas pelas circunstâncias excepcionais”.
Gustavo Binembojm acredita que essa legislação que define os parâmetros para a ação governamental diante da crise do novo coronavírus contraria o pessimismo de Carl Smith. Ele a considera “eficiente, equilibrada e oportuna”, a concretização, no âmbito da polícia administrativa sanitária, dos princípios “da adequação e da necessidade, diante da gravidade das restrições impostas à autonomia individual”.
É preciso que as autoridades lembrem que já têm em mãos os instrumentos legais para uma ação emergencial.