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Ação e reação

 

O presidente Bolsonaro, demonstrando o quão o faro político pode substituir sua tosca visão de mundo, deu ontem um salto triplo carpado e passou a convocar a manifestação do dia 15 retirando dela o caráter crítico aos poderes da República.

Não quer dizer, e ele sabe disso, que não haverá bonecos infláveis do presidente da Câmara Rodrigo Maia, ou faixas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros, ou a imprensa independente.

Apenas, com a fala explícita, Bolsonaro, em tempos de coronavírus, lavou as mãos, dissociando-se da original manifestação baseada do “foda-se” o Congresso dito pelo General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em conversa vazada.

Quando apoiou reservadamente o movimento, em grupo de WhatsApp, Bolsonaro desencadeou crise institucional que ainda assombrava a manifestação convocada por seus seguidores nas mídias sociais. Distorcendo o sentido original da manifestação para ampliá-la em direção a uma improvisada advertência popular aos mandatários do país, inclusive ele próprio, Bolsonaro oficializa a manifestação e tira de seu apoio o caráter conspiratório.

Mas se exime de culpa caso ela retome seu rumo inicial de criticas aos que não “deixam o homem trabalhar”, no caso ele próprio. Foi um lance improvisado, sem dúvida, pois até mesmo seu filho Eduardo estava pedindo a correligionários que não fossem à manifestação para não criar embaraços políticos a seu pai.

Bolsonaro foi além e liberou os manifestantes. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já tentara fazer isso, sem sucesso, junto aos movimentos populares de direita que organizam a manifestação. Sugeriu que ela fosse a favor das reformas, e não contra o Congresso. Mas não tem força política fora de sua área, nem a habilidade do presidente Bolsonaro, que consegue transformar as piores derrapadas em jogadas de mestre para os já convencidos.

O General Augusto Heleno, que pelo jeito gosta de uma disjuntiva, disse que é mentira que a manifestação seja contra a democracia, apesar de temas como intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo façam parte da pauta de reivindicações.

Ontem, contei aqui que ao ser consultado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia sobre o temor de deputados de estarem sendo grampeados nas conversas telefônicas ou gravados em encontros no Palácio do Planalto no inicio do governo, o ministro tranquilizou-o: “Isso aí acabou”. Uma negativa que traz consigo uma afirmação de que em algum momento houve.  

Como autor intelectual da manifestação, pois foi ele quem sugeriu que o povo fosse convocado para impedir a “chantagem” do Congresso sobre o Executivo, o General Augusto Heleno sabe que ninguém quer “calar o povo” criticando a manifestação, mas travar uma marcha antidemocrática que estava sendo estimulada pelo próprio governo.

Na verdade, ninguém faz marcha a favor de alguma coisa, mas contra. Marcha a favor do aborto é contra a legislação que o proíbe ou restringe. Marcha a favor do Governo é contra os que não o deixam atuar. E ao dizer que o presidente Bolsonaro está encontrando resistências de grupos corruptos que combate, o General Heleno está endossando os manifestantes que acusam Congresso e Supremo de impedir o presidente de ir adiante.

De fato, o presidente Bolsonaro, com sua rede nos meios sociais, está criando um ambiente no país que obscurece sua incapacidade de gestão com a sombra de uma suposta manobra de “forças ocultas” que o impedem de avançar.

Já vimos esse filme antes, numa tentativa de golpe do então presidente Jânio Quadros, que não deu certo. Mas Bolsonaro está tendo o cuidado de tentar criar um ambiente propício a um autogolpe, jogando seus seguidores - que hoje já não representam a maioria do povo brasileiro - contra as instituições que dão limites ao Executivo: imprensa independente, Legislativo e Judiciário.
 Haverá reações institucionais.

O Globo, 08/03/2020