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Um terreno comum

 

Sensatez em uma área não é incompatível com sanidade em outra. É possível apoiar o combate a milícias e querer a privatização da Cedae, por exemplo. Ser de centro esquerda e defender votos dissidentes como o de Tabata no caso da Previdência e o de Freixo no pacote anticrime. Ou considerar que alguns excessos ultrapassam linhas a respeitar mas também ter certeza de que a Lava-Jato faz bem em ser firme no combate à corrupção de quem foi convivente e não inocente.

Exercer autoridade sem abuso pressupõe seguir as leis. Mas não significa blindar poderoso. Criticar arbitrariedades na investigação não impede de reconhecer corrupção sistêmica e querer sua punição. Sem jogadas marotas.

Na realidade complexa, circulamos em esferas distintas. Alguém pode ao mesmo tempo querer proteção às reservas indígenas, ser ateu e exigir respeito a quem tem crença. Ou, religioso, pode defender que não se misture fé e política e que igreja pague imposto como todos nós. Garantir o direito de defesa mas exigir que criminosos sejam punidos. Ser ativista dos direitos humanos e admitir que condenado em segunda instância comece a cumprir pena, como em quase toda democracia. Estar alerta para a urgência da questão ambiental, ver que trabalhador rural precisa de amparo e distinguir o agronegócio de sua escória. Ser a favor da autonomia universitária, contra cortes na educação e perceber que sem reformar a Previdência não há dinheiro para investir. Preocupar-se com o desemprego e enxergar que isso não se deve à reforma trabalhista.

Uma coisa não impede a outra. Defender o direito ao aborto não é incompatível com rigor no controle fiscal. Rejeitar discriminação sexual, racial ou religiosa não cega para ver as estruturas de patrimonialismo, clientelismo e corporativismo que mantêm a desigualdade econômica e social — e combatê-las sem populismo.

Ideias progressistas ou virtudes éticas não são monopólio de um só lado. Um terreno racional comum é indispensável para se construir um país melhor.

O Globo, 19/01/2020