Pedro do Coutto
Com a inauguração da Biblioteca Rodolfo Garcia, este ano, na presidência do ministro Marcos Vilaça, que dinamizou a instituição, a Academia Brasileira de Letras deu um salto na história, transformando-se numa verdadeira cidade aberta à cultura. Uma ponte entre os livros e os leitores, aproximando a memória do tempo dos pesquisadores, da juventude e da sociedade como um todo.
São cinqüenta mil obras, além de quinze mil de referência. Entre as obras, algumas raríssimas, acentua o acadêmico Murilo Melo Filho, diretor da unidade e que a ela passa a emoção do jornalista e o compromisso de informar do jornalismo.
A idéia surgiu há alguns anos, quando a ABL era presidida por Arnaldo Niskier. A procura do espaço começava. Em seguida, no mandato de Alberto Costa e Silva, Melo Filho foi convidado para a tarefa. Com a liberação do segundo andar do Palácio Austregésilo de Ataíde, surgiu o local. A antiga biblioteca datava de 1905 e reunia, até há pouco, vinte mil obras, que tinham como autores os acadêmicos que ocuparam suas quarenta cadeiras desde a fundação no final do século 19. A Rodolfo Garcia, nome de um escritor do Rio Grande do Norte, é motivo de orgulho não só para a Academia, mas para o Brasil - assinala seu diretor.
É verdade, digo eu, pois sem cultura e sem arte nada se produz. Não se deve também ter preconceito quanto a qualquer tipo de expressão cultural.
Cultura - melhor definição que já ouvi - é a passagem do ser humano pelo mundo, seu eco, seu rastro, sua sombra. Acrescento à frase imagem que Marcos Vilaça gosta de usar: no processo cultural estão as impressões digitais de seus criadores e atores. E a criação, graças a Deus, não pára. Segue sempre como um rio. O rio que passa em nossas vidas. Cito a canção belíssima de Paulinho da Viola. O título deste artigo, claro, está inspirado no filme famoso de Rosselini, marco do então neo-realismo italiano do após-guerra.
Vamos percorrer a Biblioteca Rodolfo Garcia. Totalmente computadorizada, climatizada para evitar oscilações de temperatura, sonorizada. O projeto estético foi da arquiteta Cláudia de Carvalho. No hall dos elevadores, painéis que se movem pelo ângulo da visão à medida que se anda. Os fundadores de há 110 anos, Machado de Assis, Joaquim Nabuco (a maior figura da abolição), Rodrigo Otávio, Silva Ramos, Inglês de Souza.
De repente, como num travelling, são substituídos por imagens de Austregésilo de Ataíde e dos que integravam a Academia no lançamento da pedra fundamental do edifício novo, anexo ao Petit Trianon.
Caminhando-se mais entre as obras mágicas despertadas pelos tempos modernos passamos por uma galeria com 75 estantes duplas. Cruzamos a sala de multimídia, chegamos à central de informática. Daí ao amplo espaço de videoconferências. Conexões simultâneas com Nova York, Paris, Londres, Roma, Tóquio, Zurique. Comunicação imediata com os principais museus e bibliotecas do planeta.
Hoje, para alguém manter intercâmbio cultural ou diálogo econômico, não precisa recorrer à Embratel como antigamente. Vai ao segundo andar da ABL. Contrata o sistema e, se for o caso, mergulha na eternidade do gênio humano, na aventura que a arte proporciona a todos nós.
Nesta aventura incluo a ciência de Pitanguy. Uma ponte entre o passado e o futuro com uma estação no presente. No qual vivemos e sentimos a presença do tradicional e do moderno na Academia, a meu ver agora de letras e imagens. Lá está Nelson Pereira dos Santos. Como René Clair esteve na Academia Francesa. Uma seqüência infinita, portanto. Bela estrada no tempo.
Do passado, por exemplo, estão várias obras editadas ou reeditadas entre 1500 e 1850, trezentos e cinqüenta anos. "A metamorfose", de Ovídio; "A arte poética", de Horácio; "As sátiras", de Juvenal; "A década décima", de Diogo do Couto. Além destas, as obras de Diderot, 1818. A lógica de Kant, de 1840. Por aí se tem idéia do valor inestimável do acervo.
Um aspecto essencial: a partir deste ano, a Rodolfo Garcia passou a ser uma biblioteca pública. Os campos da literatura, da filosofia, filologia, história e ciências humanas estão abertos a todos. Quem desejar tocá-las e vê-las basta dirigir-se à Avenida Presidente Wilson, no centro do Rio. Pode usar o metrô: é mais seguro do que o trem. Para selecionar os 50 mil livros e as 15 mil obras de referência, uma equipe examinou durante sete anos, como no verso de Camões, um a um, nada menos que 115 mil exemplares.
A seleção acabou? Nada disso. Continua. É permanente. Está nas mãos e na sensibilidade de Alberto Costa e Silva, Eduardo Portela, Tarcísio Padilha e Evanildo Bechara. Reúnem-se todas as semanas. Mergulham na produção cultural, que não cessa nunca, renova-se, adiciona-se.
Trata-se inclusive da maior produção democrática do mundo. E também a de menor custo per capita, além de a mais socializada. Dou um exemplo: no Museu do Vaticano, uma cópia da Capela Sistina, Michelangelo, custa 17 euros. Os livros, em média, também custam isso. E são para sempre, passam de geração a geração.
O fato é que os artistas dão infinitamente mais do que recebem de nós. A ABL, com sua biblioteca, confirma esta realidade. Assim como o Louvre, que, embaixo da pirâmide, apresenta um museu de si mesmo.
Tribuna da Imprensa (RJ) 14/9/2007
19/09/2007 - Atualizada em 18/09/2007