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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Fernando Magalhães

RESPOSTA DO SR. FERNANDO MAGALHÃES

SENHOR Amoroso Lima.

Acabais de ser incorporado a uma estirpe da melhor nobreza. Mereceis, sem dúvida, a honra de recordar as figuras de exceção, espíritos de largo anseio, que contribuem de modo impressionante para a bem-afortunada genealogia da Cadeira que vos pertence. É a última da nossa conta. Por isso mesmo, é o remate límpido de muitas perfeições, onde se acolheu a aristocracia do pensamento, e a que, com incontestável direito, dais o vosso nome, votado à revelação renovadora da vida.

Qualquer dos que vos precederam é um padrão. Feliz a época que os conheceu. Recolhidos ao patrimônio espiritual de um continente, só o lembrá-los, na hora das apreensões angustiosas, faz descer ao remoinho das inquietudes a proteção dessa energia sobrenatural, armadura da suavidade, que vela sobre os desalentos e os desenganos no caminho da purificação.

Mesmo mortos, eles abrigam. Criaturas eleitas. Almas de bondade, conservando as alegrias do coração. Almas de brandura, oferecendo o conforto da crença. Almas de luz, dominando a profundidade dos desesperos. Almas de sol, aquecendo a agonia dos abandonos. Uma linhagem imaculada de lealdade cristã. Nenhum desmereceu, nenhum duvidou, nenhum tremeu diante da morte. Todos talhados para as alturas. Do patrono – o Rio Branco libertador, ficou a lembrança da beleza varonil e o eco da facúndia dominadora. A atitude fidalga, evocativa e incorruptível de Eduardo Prado assinalava uma lapidação. Afonso Arinos, porte de bandeirante, decifrava o enigma das solidões. Miguel Couto, suave e magno, oficiou no ritual de uma sabedoria misericordiosa.

Paranhos encheu a vida política do país com o seu gênio e a sua palavra; libertou vontades e convicções; arrancou do ventre escravo o homem redimido. Eduardo Prado exemplificou a nacionalidade fértil, restaurando os foros e os brasões da ancestralidade piedosa e tranqüila, diligente e próvida. Arinos sentiu no coração do Brasil, no sertão lendário e místico, a grandeza de um povo seduzido pelo desconhecido. Miguel Couto conviveu com gente castigada de males e de erros, desamparada na ignorância e consumida no sofrimento, e desdobrado pelo país inteiro, educou gerações para a caridade apostolar, humilde mas invencível, anônima mas eterna.

Todos penetrados da graça infinita de saber morrer. Fiel ao trono e ao altar, Eduardo Prado – consolidada a sua orientação religiosa – nas linhas da Imitação meditou sempre sobre “Veritas est in Scripturis Sanctis quærenda”. Despedindo-se da vida, Arinos encomenda à sua devoção, confiante e estóico, a sua alma tranqüila. Fulminado de dor, instantânea e decisiva no verso de Sêneca, resumiu Miguel Couto a sua lição magistral e última. E o ministro maçom, chefe do gabinete de 71; o adversário impenitente do Bispo D. Vital, em cujo nome, copiando-lhe as virtudes, preservais uma mocidade ameaçada; esse Paranhos servidor, poderoso, patriota, redimido pela cruciação da doença corrosiva e lancinante, venceu os seus intermináveis momentos derradeiros murmurando entre estertores, no limiar da Eternidade: “Confirmarei diante de Deus aquilo que houver afirmado aos homens...”

É o pouso da fé, o lugar em que vos sentais. Tem uma tradição de humanidade: a argúcia política, o panorama do passado, o amor à natureza, a unção da filantropia... Itinerário para os píncaros. Quatro destinos diferentes, rumando para a mesma glória espiritual. O proselitismo emancipador e construtivo de Rio Branco; o ímpeto patriótico, fecundo e remoto, de Eduardo Prado; o encantamento do sertanismo inspirador e imperativo de Afonso Arinos; a ciência penetrante, balsâmica, prometedora de Miguel Couto...

“Nasci na grandeza”, disse de si mesmo o Visconde do Rio Branco. “As fadas benéficas rodearam o berço de Eduardo Prado, dançando levemente, carregadas de dons...”, escreveu Eça de Queirós. Herdeiro de um velho nome, culto e senhoril, viveu Arinos afortunado e próspero. Perdem-se, porém, na multidão os antepassados de Miguel Couto: nem brasões nem cofres... Ele só, o primeiro, imprevisto e inesperado, compondo um nome, uma fama, um exemplo... Ele, o milagre, saído do nada, como a obra do Criador... Veio ao mundo com um fadário: subir. E subiu sempre, sem uma vacilação, sem um arrependimento. E só não subiu mais, ao termo de setenta anos preciosos e lúcidos, porque alcançara a morada das nuvens... Daí, ascendendo ainda, penetrou no mistério constelado do Infinito...
Trajetória sideral. Uma infância humilde e monótona, uma juventude enclausurada e pertinaz, uma maturidade transbordante e luminosa. Páginas singelas e comovedoras de um livro escrito no desempenho da fidelidade, segredo da vitória. Fiel ao seu sentimento, ao seu dever, à sua vocação. Amou com exatidão, obedeceu com humildade, curou com clarividência. Pode assim, no seu tempo, ser o maior homem, porque era o melhor e sabia servir; porque, longe do mando, consolador e pressuroso, sem cargos para distribuir, sem prebendas para oferecer, cercaram-no os aplausos, as dignidades, as dedicações e os fanatismos.

Ninguém como ele, com tanta simplicidade e tão larga ternura, comparável à sementeira silenciosa, germinando apesar das imprecações da tempestade. Ninguém como ele enfrentaria inerme a onipotência das armas e a ditadura dos códigos. Esse feitio missionário formou-se na resignação da criança desejosa e na tenacidade do moço desprovido. Mas o levedo do Evangelho, o levedo da idéia pura, fermentou a massa bendita e, mais tarde, a profissão nobilante prometia ao noviço o primado sobre todos os de seu tempo.

Nenhuma ocupação apura tanto a perfeição humana como essa de aconchegar os aflitos e os doloridos. Miguel Couto iniciou o seu ofício participando da mágoa dos desamparados. Exerceu a medicina compassiva e perdulária. Naquele pedaço indigente da cidade, ladeiras tortuosas e escadarias desencontradas, o casebre lúgubre conheceu-o novo e corajoso, fortalecido em dias provados e ansiosos, descontando em cuidados o peso dos seus presságios. O desprendimento sublima a arte e, no chorar com o infortúnio, há uma estesia celestial. Corra-se o trecho da miséria: o cenário triste das ruas lôbregas, onde o trabalho se castiga de vício, e das casas penduradas, onde corpos atormentados disputam o chão sórdido da dormida. Se a moléstia se junta com a penúria, os destroços humanos, náufragos da fatalidade extorsiva, descrêem do amor do próximo. E em ronda sombria, só passam os companheiros da mesma sina, cobiçando talvez a redenção da morte.

Quando a solicitude benfazeja se aproxima da doença lastimosa, não demora a esperança alentadora. A voz amiga embala os transidos, alivia os sofredores. O olhar, o gesto, a palavra, tecem o agasalho invisível onde o frio abranda, o pavor sossega, o silêncio promete, o sono esquece, e a vida reponta. Há meio século, passavam-se esses lances na morada do pobre, e socorro desafiava obstáculos para alcançar a desgraça. Andrajosa a doença, mas fraternal a medicina, as beatitudes envolviam as mortificações. Nesse ambiente de sacrifícios e de lágrimas, despontou a glória de Miguel Couto, em tarefa desinteressada e serena, espalhando perfume e claridade, na expressão votiva do seu rosto, de onde nunca desapareceu aquele sorriso, concordante e concludente, muito menos alegria do que reconhecimento.

Assim, teve ele o dom de poder escutar as multidões. E quando o mérito o levou à celebridade, o mesmo pendor nazareno acompanhou o seu prestígio, como havia revelado a sua obscuridade. A carreira de Miguel Couto deu-lhe supremacia oracular, mas a sua vida transparente catequizou ainda mais do que a sua palavra verdadeira.

Pela cidade toda, e mesmo longe dela, o médico modesto, transformado no professor conspícuo, dominou por valor e por benevolência. Não mais somente o conselho ou o juízo, fortalecidos de experiência vasta e de observação sagaz, projetavam a sua ação e o seu renome. Na cátedra, onde pregou por quase quarenta anos, nutriu discípulos inúmeros, formulou princípios duradouros, construiu doutrinas aprovadas. Plasmou caracteres, fortaleceu aspirações, instruiu mestres, preparou sábios. Pelo que, quando se soube que o mal, pressuroso e traiçoeiro, o fulminara de pé, por longas horas, lacrimosas e nevoentas, uma procissão ininterrupta e desconsolada contemplou a figura plácida do justo, adormecido na formosura da morte sorridente...

Move-se o mundo pela vontade de poucos. Daí o perigo dos chefes, tanto os violentos e os reacionários como os egoístas e os incapazes. Nos que comandam, a sofreguidão querelante incita à desordem, e o imediatismo insaciável destrói o conceito dos interesses superiores. Atributos especiais marcam as individualidades. A força não impele os convertidos: só o exemplo os atrai. Os santos, chefes que nunca perdem autoridade, comandam com as mãos suplicantes e convencem com o corpo mortificado. O halo de santidade é o fim da jornada pelos passos da sublimação. Quanto mais conformado com as injustiças do mundo, as murmurações da vida, os transes do sentimento, mais humanizado o apóstolo singular que semeia embora não colha, que empreende sem contar com o êxito, e que marcha mesmo para o sacrifício...

Sabedor do seu mister quase divino, nele bebendo a inspiração comunicativa, Miguel Couto, dentro das mais altas realidades, foi o pastor que tange as ovelhas mansas para o aprisco e, sem orgulho ou cólera, leva as tresmalhadas sobre os ombros complacentes. Ouviam-no de todos os pontos do país. Os indecisos enchiam-se de certeza. Na sua cátedra, ofereceu troféus e aclamações, pregou aos moços o gosto da disciplina voluntária e, lamentando a vaidade intelectual, enalteceu o poder das realizações humildes.

Eis o homem. Igual, senão maior, a sua obra, cercada da consagração universal. Tinha o direito de sede nos maiores cenáculos da Europa e das Américas. Não foi mais na sua terra, porque prezava a renúncia. Mesmo assim, abriam-se-lhe as portas e os postos das academias e das universidades. Vazou, em muitos volumes, o arquivo da sua prática. Realizou a pesquisa, dando-lhe técnica e lógica. E na preocupação patriótica a que sempre se subordinou, os problemas médicos mais imperiosos, como o da febre amarela, o empolgaram. Se muito foi na poligrafia clínica, entrou poderoso nas questões sociais, defendendo a raça periclitante, desorientada no delírio dos movimentos, na alucinação das hipertrofias, no entorpecimento das iniciativas.

Veio a esta Academia por títulos de cultura rara. De ótimas e adequadas letras serviu-se, apurado na frase escrita com a elegância e o rigor dos melhores clássicos. Não preferiu o exclusivismo ou a insistência literária. Por isso mesmo, não gastou o vernaculismo e a arte na carregação e na futilidade. Arrolou-se entre os expoentes, que não deslustram esta companhia. Aqui ficou por perto de vinte anos, dando-nos o favor de sua convivência. E todos leram, vendo-o, as linhas do seu grande livro, a história e o valor da vida de um desbravador de almas, atravessando sem mácula a turbulência do paganismo moderno, a onda dos infames desejos e dos vergonhosos compromissos, para emergir na imensa paz espiritual, favorecido de meditação e de recolhimento.

*  *  *
Não o acaso, mas uma invisível Providência, trouxe-vos a este lugar, cuja continuidade espiritual só vós, Sr. Amoroso Lima, poderíeis afiançar. Ele não é “o instituto de aposentadoria da decrepitude literária”, como o supusestes, arrancando à Academia, em nome de uma renovação, um dos seus florões – Graça Aranha, levado sobre os vossos ombros na tarde do rumoroso dissídio. Tínheis essa dívida aberta, e pagais pessoalmente agora as conseqüências dos arroubos da mocidade inadvertida. Compreendestes a ineficiência do protesto. O sopro da moderna emancipação não incutira no doutrinador adversário a confiança no seu credo. No instante único, ele foi firme; mas depois, permaneceu indefinido. Diante dos “espectros”, não podia desertar o anunciador da verdade. Por culpa de seu silêncio, os companheiros, funebremente mascarados, se debateriam no erro e no equívoco. Lançou, em retirada veloz, a excomunhão, quando melhor fora subverter a Academia bolorenta, cujo anacronismo entretanto poderia ter usado no voto ascético de Machado de Assis, inaugurando a sua Casa como uma soberba torre de marfim destinada à contemplação.

Saldais a vossa dívida, dizendo, neste mesmo recinto onde promovestes a revolta dos anjos, que – “a evolução intelectual de um povo obedece à tradição e à criação”. A criação, a que chamais espírito próprio, sendo privilégio, não tolera vulgaridade. A presunção perturba ou mata o senso dos inovadores, e a estética dos extravagantes muito se assemelha à concepção artística desconexa dos alienados. A metáfora onomatopaica , o verso solto, o exotismo delirante, a complicação tipográfica, são o arsenal inócuo do neofilismo libertário, entronizando, com a confusão dos métodos, a demagogia letruda, excêntrica e farandulária, que mistura as excelências e as mediocridades.

A tradição, espírito coletivo em que triunfais agora, é a voz eloqüente do passado soberano. Profanando-a, os rebeldes amotinam os entendimentos apoucados. Um postulado ambíguo, impressionando um raciocínio menor, provoca o erro autoritário. E o preconceito, pretérito ou futuro, é o mal infectante da tradição, que será assim a filha bastarda da sabedoria, quanto a rotina é a descendente legítima da ignorância.

Enfim, fugindo à balbúrdia das negações, merecestes o dom de penetrar respeitosamente no passado, cuja nostalgia o presente impõe. Nesse grande passado construtivo, o passado da resignação e do devotamento, educais uma numerosa missão paciente, penetrante, confrontando os necessitados com os propósitos da vida nobre, evangelizando de novo a terra hostil e selvagem no materialismo ambicioso, percorrendo os ciclos infinitos de Carrel, feliz indagador da natureza: o ciclo do belo, onde se contemplam sábios, artistas e poetas; o ciclo do amor, que aligeira sacrifícios e mágoas; o ciclo da graça, recompensa suprema aos que procuram com fé o princípio de todas as coisas.

No conceito do milagroso experimentador, que pode prorrogar a vida tecidual, fulge a ciência espiritualista que poliu o vosso antecessor. Reconhecendo a invisível Onipotência, defendemos a superioridade humana: fora do seu domínio, o esforço, é agitação, a idéia é delírio. O orgulho ímpio aduba o fanatismo científico, negando o divino, procurando entretanto outro deus, desconhecido e transitório, diante do qual se desespera a humanidade sucumbida ou cruel.

Apesar de todas as teorias, de todas as descobertas, de todas as leis, a vida e a morte, o espírito e a matéria, o tempo e o céu, a ferocidade animal e a crueldade humana, são eternas interrogações. A aflição só descansa no profundo idealismo religioso, onde a provação acalma as dores, dando-nos a coragem de viver. Ricos, pobres, humildes, soberbos, tiranos, sacrificados, néscios, gênios, sejam quais forem, cada qual conhece os momentos em que o erro e a falta acusam e amedrontam a consciência, que se retempera no desejo inato, incontido e luminoso, de murmurar para o espaço a oração do arrependimento.

Sobre as nossas cabeças, vela o mistério dos mundos desconhecidos. Até onde tem chegado, a audácia dos homens sempre reconheceu o recuo do intangível. Mas não cessa a ânsia de subir. No alto, está a luz, está o pensamento do Universo, está o símbolo da perfeição. Buscam o firmamento os que têm ideal: os cúpidos descem ao fundo negro da terra. E entre abismos de claridade e abismos de escuridão, passado o suplício das anarquias demoníacas, das degenerações utopistas, da força do mal e do ódio, a alma dos povos, como a alma dos indivíduos, exalta-se na espiritualidade que compreende o infinito e dialoga com os mortos.

Louvada a harmonia com que prosseguis na humana expressão da Cadeira que vos coube. Humanistas sois, e máximo, dentro do método, dentro da filosofia: método que dispõe a cultura, filosofia que encontra na morte a evidência da imortalidade. Humanismo que se dobra diante das antigas idades, de onde brotaram a etimologia dos sentimentos, e a evolução espiritual da espécie. Humanismo redentor, apontando o ímpeto para a salvação; exercício intelectual que desenvolve a “Caritas humanis generis” entre sonhos, realidades e decepções, embaladas na litania do passado que ainda ecoa na Acrópole, no Capitólio e nas ruínas da Sagrada Jerusalém...

A orientação moderna classifica as criaturas pelo interesse, e as enreda na turbulência das sindicalizações. Ódio organizado pela competição ameaçadora. No domínio do espírito, comunidade é obediência, é pobreza, é castidade; no da matéria, é rebeldia, é cobiça, é libertinagem. Os homens jogam-se às satisfações próximas, esquecidos das necessidades profundas. O esforço, colaboração e solidariedade, desanda no tumulto e no rancor. Loucura que a mentira das propagandas oculta maldosamente no fundo das desilusões. Então, a inquietude coletiva lamenta a ausência da simplicidade. O símbolo da faina feliz subsiste na memória dos anônimos. É a visão da forja ardente, derramando fulgores: lá estão o braço fiel, o fole alentador, a bigorna sonora, a fagulha estrelante, a alma, a fé, a alegria, a transfiguração do trabalho abençoado.

Na longa perspectiva dos acontecimentos rubros, anunciados, como cataclisma próximo, pelo horizonte negro, encastelado de tempestades, assistis ao “espetáculo confuso do Brasil biológico e cultural”. Conduzindo a nação, as elites mostram decadência. A era imperial favoreceu os préstimos da sua gente, conhecedora da cultura clássica e, conseqüentemente, da humanidade melhor. Dizia-se então, pela boca dos históricos, que o país se entravava na mediocridade equilibrada. Realizado o sonho republicano, as mediocridades alastram e desaparece o equilíbrio...

Pesa especialmente sobre a mocidade popular uma época de desmoronamento, atentando contra a sua origem e contra o seu destino de continuadores dos heróis desconhecidos, praticantes do trabalho que foi sempre um ato de fé na humanidade, enlevada nos ritmos eternos. Prometeram à juventude, nascida na confiança e na fidelidade, a energia destruidora, fonte das irreparáveis desarmonias. Longo tempo de laicismo sectário deformou e agravou a despreocupação educativa. E quando a falsificação humanística, adquirida a bom preço, arromba as Universidades, a algazarra só defende o direito de não saber.
Biologicamente, no rito pagão da forma, no exagero funesto dos atletismos, a promiscuidade devassa os encantos da seleção e corrompe as fontes da espécie. Não se apura a raça no atropelo dos instintos, nem garante a pátria em perigo o relevo dos músculos e a exibição das plásticas. Gente forte, é o lema. Mas deitados ao longo das areias do mar, na hora adiantada e intensa da obrigação, homens válidos estendem-se na imobilidade dos desocupados, pedindo ao sol causticante, não a medicina dos seus fulgores, mas a tonalidade africana da nudez provocadora. Era olímpica da força transitória. Um murro vale mais do que um livro. Aos poucos a dissolução campeia, a virtude indefesa temerá as ciladas do pecado. E Gabriel e Lúcifer carregarão as pedras do edifício futuro...  

Por isso acabais de denunciar a hora das ameaças: “a inversão moral, a dispersão política, as injustiças econômicas”. Outro que eu saiba, não existe, melhor do que vós, organizador da resistência capaz de restabelecer e de resguardar os bons princípios. A conspiração dissolvente maneja a miragem a ininterrupta ventura temporal e, coligando os desatinados, engrena na confusão a mocidade sem guia. A sugestionabilidade dos novos envolve-os na fantasia cruel das idéias odiosas, germinadas na ambição dos trêfegos. Mas ao lado das velhas heresias, das filosofias imundas, das ciências eróticas, segue a confraria da caridade, de que sois pendão altaneiro, obediente a um credo imortal, espalhando pelos recantos tristes da cidade o benefício da regra que, antes de tudo, protesta contra a caducidade do dever.

O materialismo resolveu trucidar, porque se sente morrer nos escombros da incredulidade. Inexplicável e inexplicativa, a matéria. A horda selvagem agride o espiritual, debatendo-se na ignorância raivosa. Revoltada, a incapacidade não tem uma atitude fraterna. Na arenga conspurcadora não há apelos, há ameaças. Afiançam a felicidade, não pela paz e pela doçura, mas pelo sangue e pela profanação. Enquanto o desordeiro lança bombas, o missionário derrama bênçãos. Mas o insulto vociferante não abafará jamais o murmúrio da prece universal.

Os atordoados imprecam. O homem pede socorro. É preciso salvá-lo dos automatismos políticos, das compressões partidárias, dos ensinos rapinantes, das amestragens pedagógicas. A crise é de sonhadores, sufocados de técnicos, na nostalgia do ideal, refugiados no remanso onde não medra o utilitarismo vencedor e fortificado, derramando metralha. Esta tranqüilidade, sim, será um dia a pátria que não se representa numa comandita aventureira, mas só se integra numa comunhão espiritual, numa fé coletiva, numa generosidade transbordante.

Para lá caminhamos: o passado venerável e imemorial há de se impor ao presente atrevido e vertiginoso. Vertigem que não poupa vítimas. Duas realidades antagônicas: a roda veloz, alucinante, zunindo para o abismo, levantando pó; a roda mansa, cautelosa, cantante, em busca da tarefa, abrindo trilha... São assim os homens. Uns chegam rápido à morte, sem tempo de contemplar o panorama da sua geração. Outros, lentamente, semeando afeições, abrem sulco na consciência da sua época.

Mesmo, seja essa época a do paganismo que despudora os corpos púberes e as almas adolescentes. A sabedoria de Santo Tomás de Aquino manda freqüentar a natureza por causa do divino, “nessa esfera infinita, com o centro em toda à parte e a circunferência em parte alguma...” vale a perspectiva terrorista, porque gera o deslumbramento do martírio. O que é igual repousa, o que difere fecunda, disse Goethe. O erro vem da semelhança, sentencia Platão. Desta forma não claudicarão as vontades diante dos obstáculos. A dispersão política, de que vos arreceiais, só subsiste pela incompreensão e pela má distribuição das liberdades. A Igreja condena o liberalismo, se ele constitui reivindicação de independência absoluta, naturalismo filosófico aplicado ao domínio moral. Gregório XVI, no “Mirari Vos”, denunciou a autonomia kantiana que emancipa o indivíduo das imposições morais, recordando a máxima de Santo Agostinho: “Nenhuma morte mais funesta às almas do que a liberdade do erro.”

De fato, no pandemônio político abusam da metafísica da autoridade e se entrincheiram no excesso dos direitos soberanos e das liberdades intangíveis. A disciplina cívica, perturbada pelo panteísmo político, apura-se no preceito católico que aconselha pacientar com a temeridade despótica dos príncipes. Da ordem pública, ainda comenta o Doutor Angélico, cada um espera aperfeiçoamento da sua existência e dos seus costumes pela ação da virtude. Tal a coerência doutrinária que, séculos depois, na Vie Spirituelle, o Père Lagrange reage contra a noção naturalista da caridade, alma da democracia religiosa. O ensinamento não se destina apenas à massa irrequieta. O preceito da obediência praticante não se aplica somente à onda humana desgarrada; maior e mais imprescindível a responsabilidade dos que precisam conhecer o rumo do bom governo.

Não menos reparadas, na verdade cristã, “as injustiças econômicas”: “a luta entre o poder do ouro e o poder dos desesperos”. Os padres da Igreja, em estilo severo que os escolásticos abrandaram, censuram a negação do regime distributivo, porque os afortunados insistem em não querer distinguir o suficiente do supérfluo. Adverte o ardente São Basílio que pertence ao nu a roupa guardada nas arcas e, ao pobre, o ouro escondido nos cofres. Fundamento de uma verdadeira doutrina jurídica: desde o século IV, para a Igreja, o uso do necessário é um direito e a posse do supérfluo uma intendência. Era assim que, aos ricos da sua Igreja, falava o Bispo de Cesaréa, há mais de 1.500 anos...

Será difícil, mas conhecido, o caminho da vida feliz. O efêmero, porém, não é a rota. Nem o efêmero nem o opulento. Palácios, festins, alfaias, moedas, não afugentam pesadelos. Bem-aventurado, o simples, contrito e agradecido, servidor do Pai Perfeito que, das alturas, tanto o afasta da tentação como o aproxima do pão de cada dia.

*  *  *

Em pouco mais de três lustros, escrevestes três dezenas de livros. Como assunto, tudo: o moral, o econômico, o jurídico, o literário, o pedagógico e até o político. Para cumprir a fórmula regulamentar não vos faltaram razões. Recém-vindo à maturidade, pensando com maestria, herdastes, e guardais, o magnífico espólio intelectual de Jackson de Figueiredo, o animador da vossa fé. Ainda não se havia focalizado o nome desse cavaleiro da nova cruzada e, entre os rumores de entusiasmo, corria a nova da vossa conversão, declarada na Tentativa de Itinerário, programa de uma campanha de renascimento “pela volta à religião que nos formou, pelo estímulo à ciência verdadeira, pela reforma social cristã de uma sociedade que se suicida na inconsciência paganizante, pela fusão da arte com a realidade, para arrancar a máscara do convencionalismo sem prejuízo do humano e do universal. E acima de tudo a reforma do homem íntimo, a orientação ao Santo mais que ao super-homem”.

Estreastes na arena literária antecipando um triunfo com o estudo da vida fidalga e esmaltada de Afonso Arinos. Nesse surto, consagrou-se desde logo o ensaísta. Nascido sob o signo da predição, para vós a crítica foi antes de tudo um instrumento de verdade. Ninguém se entendia na república das letras e os censores azedavam-se demais nas polêmicas contundentes. Sobreposto à confusão, fizestes o anacrônico renegar o absolutismo e o vanguardeiro evitar a desordem. Muito tem servido o clássico para encobrir a insuficiência e o moderno para disfarçar a ignorância. Nos arrebiques das linhas arrevesadas demasiadamente gramaticais, costuma faltar à inspiração; nas páginas desordenadas, esotéricas, essencialmente boêmias não é raro minguar a originalidade. E, molestado pelo superficial alheio à convicção que participa do fundamento moral de arte, desempenhastes o papel de comentador, derreando tanto a teimosia dos massudos como a leviandade dos inovadores.

Muito de malquerença vos tocou: tributo da estimação. Por conta do alegado insidioso, articularam-se principalmente os que se desesperam com a vossa austeridade. Assim é que, iniciado na moderna economia política, complexa e esquiva, a sociologia contemporânea, confusa e buliçosa, pensastes professá-las com a galhardia de todos os vossos empreendimentos. A intransigência obstou! No reinado dos pedagogos os irreais dispõem do dogmatismo pueril.  Recalcando a razão, vetaram o vosso direito por hostilidade à vossa crença. O repúdio não maculou. Lá está indelével nas Escrituras que na cadeira de Moisés sentaram-se os fariseus.

Fora dos interesses e dos corrilhos a exegese política levou o vosso concurso à trincheira dos defensores da dignidade sentimental. Simulando uma ideologia altruística conspiram e arreganham os demolidores dos templos e dos lares. Dado o alarme, a vossa atividade jornalística despachou-se para todas as distâncias congregando os vossos fiéis. Assim sois o grande chefe, instruindo e educando, outro Frederico Ozanam, o santo leigo, como vos chamarão um dia, fixando na questão moral a questão social, “efeito menos do pauperismo verdadeiro do que da ignorância religiosa e da impaciência autoritária”. Grande chefe que encheis uma vida ainda curta com uma utilidade sempre desmedida.
Destes textos há distribuída matéria esparsa para vários tomos. E se não traçais diariamente de mão própria o tema palpitante, o vosso estado maior traduz o que pensais na “Coluna do Centro”, de um onde dirigis o bom combate. Não transige a vossa alta imparcialidade, nem mesmo diante do exclusivo trato regulamentar das práticas religiosas exteriores que, por si sós não representam o verdadeiro espírito católico. Assim julgastes o problema da burguesia, e não temestes, chamando-a ao exercício da dedicação, censurar o egoísmo aflitivo e sôfrego dos candidatos ao Reino do Céu, que limitam o seu fervor à impertinência das súplicas exaustivas.

Privilegiadamente cristão, cuidais da vossa alma carregando os fardos alheios. Espontâneo e pontual, o vosso estilo combatente reveste de humildade invencível a vossa serena coragem. Ninguém vos negará a devoção, nem a sinceridade, e por isso podeis proclamar a falência da civilização burguesa, sem conceito de sacrifício, roída de individualismo, envolvendo os novos no ambiente do artifício religioso, subordinado às exigências do comodismo nepotístico ou do arrivismo ganancioso.

Recusastes permanecer no tumulto da gente que “nasce envelhecendo e de alma cansada, passando pela infância como moços prematuros e pela mocidade como velhos desiludidos”. Enfrentais a estrutura do mal moderno sibarita e negativista, fermentando na indiferença religiosa, na neutralidade política, no laicismo pedagógico, no individualismo econômico. Os vossos escritos preparando a “Reforma Social”, espiritualizando “a Política”, organizando a “Contra-Revolução Espiritual”, desmaterializando o “Direito Moderno”, esclarecendo os “Debates Pedagógicos”, anunciando o “Limiar da idade nova”, desenrolam-se eruditos e definitivos, conferindo-vos a magistratura intelectual que condena a precocidade, o naturalismo, a ironia céptica, os três demônios tentadores da mocidade desprevenida.
Senhor de invejável organização cultural, destacado dentre os de melhor água na atualidade brasileira, sois uma figura primaz, inconfundível de pensador. Documentos de excelso sentido, os vossos livros bastavam para deferirmos a vossa solicitação. Mas, além da capacidade criadora, para maior irradiação desta noite festiva, direi também do fecundo apostolado que tem sido a vossa ação predestinada, apontando aos errantes e aos desarvorados a morada das virtudes.

Tendes um bando de discípulos. Eles transmitem a vossa palavra e copiam a vossa alma. Andam pelas colinas aflitas da cidade. Chama-os a toca, e eles já sabem consolar. Realizam com esforço o alívio da penúria, prometem com segurança a recompensa do sofrimento. Galgam por declives adversos e pedrosos, a crista do monte e, aos pés do Cruzeiro, desvendam aos revoltados a ânsia da cidade enfartada de mal. Quando sobem, para o exercício da caridade, vão pelas mesmas veredas por onde, há meio século, Miguel Couto passou e venceu. Estranha coincidência, a desse encontro de vocações entregues, agora, tanto ao vosso culto incessante como à vossa vigilância paternal.

A Academia vê em vós, Sr. Alceu Amoroso Lima, o grande unificador de corações, reacendendo nos novos a chama gigantesca da transformação espiritual. No meio da noite escura, até os incrédulos se orientam pela marcha dos astros. Há um grande temor pelo futuro. O mundo tem medo de si mesmo.

Mas o mundo é um conceito sagrado. Entrelaçadas as mãos, firmes e puras, na extensa cadeia da fraternidade, ufanos de sua origem divina, os homens de amanhã, como os rios oceânicos, seguirão pacíficos o seu destino majestoso.