Tobias Barreto, adaptando formulação de Emerson, disse que no seu percurso arribou, como um canoeiro, em parte aonde pretendia arribar e em parte aonde o conduziu a força da correnteza. Minha canoagem no mundo jurídico provém de uma visão da Filosofia do Direito, na linha de Bobbio.
É uma área do conhecimento elaborada por juristas com inquietações filosóficas, instigados em sua reflexão pelos problemas que não encontram adequada solução no âmbito estrito do Direito Positivo. Hoje, muito mais do que no passado, “a lei não está mais pronta para o uso”. Daí a pertinência de uma Filosofia do Direito dos juristas, lastreada no concreto da dinâmica da experiência jurídica.
No meu caso, este “parar para pensar” beneficiou-se do trato com o Direito Internacional, que me deu oportunidade de lidar com um problema que em nosso país crescentemente me preocupa: o da segurança jurídica. “Um direito incerto é também um direito injusto”, observou Theophilo Cavalcanti Filho. É o nexo incerto/injusto que faz da segurança jurídica um valor de primeira grandeza em qualquer ordenamento democrático. Por isso a ponderação da segurança jurídica tem relevo hierárquico, conferindo identidade própria ao “governo das leis” como algo distinto do “governo dos homens”, tema da ordem do dia no Brasil.
Na dinâmica da interpretação e aplicação das normas, as profundas transformações do conteúdo do Direito reverberam uma formulação de San Tiago Dantas: “O jurista está no mundo de hoje como deve ter estado o geógrafo na época das descobertas”.
São ingredientes da nova cartografia o avassalador avanço do conhecimento científico-tecnológico, que vem propiciando a transposição de barreiras antes tidas como naturais e efetivas. A natureza deixou de ser um dado para ser um construído da ação humana. Daí uma nova área da Filosofia do Direito, a Bioética, voltada para o esclarecimento de questões suscitadas pelas inovações que tornam possível agir sobre fenômenos vitais de maneira inédita.
Na práxis do Direito isso vem ampliando o escopo e as transformações do Direito de Família (paternidade, gênero, inseminação in vitro) e do Direito da Saúde (transplante de órgãos, próteses, novos remédios, prolongamento de vida), ensejando o jogo dialético entre o possível e o aceitável, que com frequência o magistrado se vê na obrigação de dirimir.
A civilização industrial evidenciou a fragilidade dos ecossistemas. Daí a razão de ser do Direito do Meio Ambiente, das novas dimensões da responsabilidade jurídica, de novos institutos como os de análise de impacto ambiental e do princípio da precaução, que passaram a se inserir no âmbito da prestação jurisdicional.
A era digital vem levando à crescente informatização do Direito. Ampliou-se o acesso à informação e à sua divulgação. Daí novos problemas para tutela de direito à intimidade, do sigilo bancário e tributário, da contenção dos “escritos de ódio” nas redes sociais, do direito à informação exata que a propagação das fake news põe em questão.
A amplitude do armazenamento eletrônico de dados dá outra escala à cooperação internacional das autoridades tributárias, voltada para conter a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro; o mesmo ocorre em matéria de escala pelas interações dos Ministérios Públicos e das polícias, o que cria novos desafios para a temática das provas e da sua apropriada aceitabilidade, num Estado de Direito, com impacto no Direito Penal.
São também novos desafios do Direito as exigências provenientes da crescente complexidade da sociedade brasileira. Daí o direito das áreas especializadas dos serviços públicos e no campo dos direitos humanos os do consumidor e os que resultam da tutela da especificação dos seres em situação de vulnerabilidade, de onde provêm os temas de identidade e de aceitabilidade do “diferente”.
Em síntese, o papel do Direito deixou de ser o de conservar a sociedade, passou a ser instrumento de gestão da sociedade atento às funções de permitir, proibir, estimular e desestimular condutas. As necessidades de gestão comprometem a estabilidade do Direito, como o produto da durabilidade do work de que falava Arendt e de que são exemplo as grandes codificações. As normas jurídicas passam a ter, crescentemente, as características do labor, ou seja, expressam o incessante metabolismo da sociedade. É o que explica as medidas provisórias, as contínuas emendas constitucionais e no Direito Tributário, na perspectiva do contribuinte, o permanente desafio do custo da conformidade.
A Constituição de 1988 está em sintonia com o que Bobbio qualificou de função promocional do Direito e vem impactando a interpretação de todos os ramos do Direito. Os seus muitos princípios têm função prospectiva e, em virtude de sua maior generalidade, força expansiva. Esta não só colocou na prestação jurisdicional o problema da solução das antinomias entre princípios, mas os desafios da interação entre regras e princípios, favorecendo na práxis jurídica tanto a legitimação pelo procedimento, de que tratou Luhmann, quanto uma dogmática de decisão, lastreada na teoria da argumentação. Ambas frequentemente escapam do entendimento da opinião pública ao se converterem em “juridiquês”.
A Constituição ampliou o acesso à Justiça, que encontrou eco na litigiosidade da sociedade e a multiplicidade de recursos processuais estimula. Daí uma sobrecarga não só do volume, mas da complexidade de demandas com que se confronta o Judiciário.
Não é um ofício simples o de julgar, sempre permeado pela aspiração de justiça da sociedade. Por isso me permito acentuar que cabe ao Supremo Tribunal Federal, como vértice do Poder Judiciário, enfrentar um dos grandes problemas do Direito em nosso país: dizer o Direito sem causar as perplexidades oriundas das decisões e deliberações dessultórias que comprometem perante a opinião pública a autoridade da magistratura.