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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Antônio Torres

Pela vontade unânime de seus membros, a Academia Brasileira de Letras recebe hoje um escritor puro sangue, radical, que em muito a enriquece, nas exatas palavras do nosso presidente, Marco Lucchesi, para quem a sua obra, consagrada no Brasil e no exterior, traz um misto de alta cultura e ironia, olhar incisivo e viés experimental.

Uma obra – acrescentemos - a comprovar, amplamente, que literatura é uma combinação de inspiração, transpiração, obstinação, indagação, indignação, provocação, espantos.

Jornalista desde os 16 anos, quando passou a escrever em jornais de sua cidade natal, Araraquara, Ignácio de Loyola Brandão se projetou em São Paulo no diário Última Hora. Trabalhou também nas revistas Cláudia, Realidade, Planeta e Vogue. Sua experiência jornalística faria dele dono de um estilo direto, forte, feroz, que o levou a se tornar “o símbolo vivo da liberdade do espírito e dos direitos da inteligência”, na aguda percepção de um mestre indiscutível das nossas letras, o professor Antônio Cândido.

Contista, romancista, cronista, biógrafo, autor de livros de viagens e para crianças, tantas vezes lido, estudado, traduzido, adaptado para o cinema e o teatro, muito ouvido Brasil adentro e afora, premiadíssimo – inclusive por esta Casa (Prêmio Machado de Assis), e pela Câmara Brasileira do Livro (com nada menos do que 7 Jabutis), e na Itália, e etc. etc. -, Ignácio aqui chega trazendo na bagagem a sua produção imensurável - para recorrer a uma palavra tão cara ao senhor seu pai, Antonio Maria Brandão, o seu Totó, quem sabe para dar a dimensão dos seus próprios sonhos quanto ao destino do filho, no qual incutiu o amor pelos livros, nas tardes de leitura antes do jantar, tendo à mão uma biblioteca municiada de dicionários, que fizeram dele o menino que vendia palavras... Ao preço de uma bola de gude, de uma figurinha, de um recorte de revista. (- Quer saber o que é enfado? Vale um picolé. Pantomima? Um chiclete. Absolvido? Duas balas Toffe...).

E foi exatamente com este enredo infantil que ele veio a ganhar um prêmio da Fundação Biblioteca Nacional, em 2007, e um Jabuti de Livro do Ano, em 2008. Mais um ponto para a oficina literária do senhor Antonio Maria Brandão, da qual o seu filho Ignácio guardou indelevelmente a encantadora cena da sua mãe, Dona Maria do Rosário, a despejar o feijão sobre a mesa para separar os grãos bons dos carunchados, dos gravetos, das pedrinhas, enquanto o seu pai lhe dizia para prestar atenção naquele afã maternal e que dele viesse sempre a se lembrar, ao escolher as palavras.

Como se ele, o seu Totó, estivesse a lhe recitar uma lição que ainda iria ser escrita, por um poeta pernambucano de estilo identificável ao primeiro verso, que, uns vinte anos à frente daquelas noites araraquarenses, delas parecia ter memória. Ou influência, como veremos:

Catar feijão se limita com escrever:

joga-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
 

Essa amostra das permanentes meditações de João Cabral de Melo Neto sobre o ofício de criar é do seu poema Catar feijão, publicado em 1966 no livro Educação pela pedra que, se lido pelo senhor Antonio Maria Brandão, poderia levá-lo a recordar-se de seus ensinamentos para o filho, que um ano antes (1965) já havia estreado na literatura, e com ar de quem a ela chegava de forma definitiva, sendo saudado pela crítica assim: “Finalmente um jovem escritor com um jeito firme de ser”.

- Eu não disse, Ignácio?! – exultaria, triunfante, o seu Totó, orgulhoso de ver que o seu filho soube juntar a fome com a vontade de escrever.

Deu no que deu: livros e livros às mãos cheias.

Em 45 volumes publicados.

Até agora.

Tudo a valer o feijão que Dona Maria do Rosário catou.

Para o contexto deste texto, chega a parecer uma homenagem a ela a cena do feijão lembrada pela imensurável Fernanda Montenegro, em suas memórias recém-publicadas. Trata-se do final do filme Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman, no qual Fernanda contracenou com Gianfrancesco Guarnieri, rodado numa casinha paupérrima de uma favela chamada Brasilândia, em tempo de choque – no Brasil real - entre o Exército e os sindicatos do ABC paulista. “Leon nos falou que a cena seria para ele um modesto tributo a Eisenstein” – relembra Fernanda. “Diante dessa oferenda, nos baixou uma comoção, diria, religiosa. Ninguém jamais filmou nada maior do que O Encouraçado Potemkim.

“Guarnieri e eu não ensaiamos. Só nos olhamos e começamos ganhando as pausas, os olhares, os toques de mão, nossos dedos salvando os bons grãos, os não podres – os grãos que, um dia, vão nos tirar da injustiça social do país”.

Senhor Escritor Ignácio de Loyola Lopes Brandão:

Precisaria de mil e uma noites para juntar no Salão Nobre do meu cérebro todos os grãos separados em minhas leituras, releituras, anotações, e memórias em torno da sua imensurável trajetória.

À maneira do antológico cineasta que levou aquele que aos 16 anos fez sua estreia como crítico de cinema num semanário de Araraquara a querer ser roteirista na Cinecittà, onde conseguiu acompanha-lo em ação... Amarcord.

Sim, eu me recordo de uma redação agitada e barulhenta de um jornal vibrante, no Vale do Anhangabaú, na qual éramos colegas de trabalho há mais de um ano, mas pouco nos falávamos, não sei se por sermos de áreas distintas – um, na reportagem geral e na crítica de cinema; o outro, na seção de esportes -, ou por uma casualidade de termos feito turmas diferentes. O certo é que num dia em que bati o ponto no grande relógio postado um pouco além da porta de entrada da redação bem antes da hora, imaginando ser o primeiro a chegar, fui surpreendido com o tac-tac-tac de uma máquina de escrever, único sinal de vida naquele salão vazio. Ao passar perto de quem, de costas para a entrada, catava feijão nas teclas completamente absorvido pelo seu matraquear, tive outra surpresa: a de um aceno para que me aproximasse. A mão que acenava apontou para uma pilha de páginas que mal cabiam na borda de uma estreita mesa, enquanto uma voz dizia: - Dá uma olhada nisso.

E foi assim, ao acaso, que me senti testemunha ocular do nascimento do primeiro livro de um escritor que não demoraria muito a se tornar um dos expoentes de uma geração que chegaria a esta Casa com Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Carlos Nejar, Cícero Sandroni, Domicio Proença Filho, Rosiska Darcy de Oliveira, Moacyr Scliar, João Ubaldo Ribeiro.

Senhoras e senhores:

Até aquele começo de tarde eu já admirava, um pouco à distância, o repórter e crítico de cinema que ainda se assinava apenas Ignácio de Loyola – um crítico que fazia uma defesa cerrada do cinema-novo brasileiro. Admirava-o tanto pelos seus textos quanto pelas visitas que recebia, sobretudo de beldades que eu só conhecia das telas, das páginas das revistas ou das fotografias que ilustravam as suas próprias matérias. Como não perder a respiração – para dizer o mínimo -, diante de uma foto em que ele, cheio de si, posava ao lado da atriz Kim Novak, de quem foi intérprete, porque o funcionário do Consulado Americano se atrasara à chegada dela ao aeroporto de Congonhas, quando do lançamento em São Paulo do filme Um corpo que cai? (“Ela não é só a mulher mais linda de Hollywood. É inteligente e perfumada” – assim Ignácio a descrevia para os deslumbrados à sua volta, como se ele fosse um Scott Fitzgerald a se ler em voz alta: “A beleza, que nasce de novo a cada cem anos...”

Recordo isto para dizer que naquele momento um outro Ignácio se revelava aos meus olhos: o escritor! Aquele seu aceno, à minha passagem ao lado da máquina de escrever em que ele batucava, teve o impacto de uma epifania. Mal sabia eu tratar-se ali do primeiro dos muitos encontros que iríamos ter, até este aqui, e os que ainda estarão por vir.

Já tinha um amigo naquela redação que vivia dizendo que ia escrever um livro. O paraense Antonio Contente. O tempo todo ele falava do título desse livro que estava em sua cabeça – título esse que me encantava: “Um doido no quarteirão”. De outra parte, um carioca chamado Hamilton Almeida e um paulista de Quatá, Eloy Santos, me arrastavam pela noite em busca dos cenários e personagens de um livro que – eles achavam – teríamos que escrever a seis mãos, e que iria se chamar Nós, os moleques. Nossas peregrinações noturnas por vezes nos levavam às mesas de jovens promessas da literatura, como Jorge Mautner no romance, Lindolf Bell na poesia, João Antônio no conto – o extraordinário João Antônio de Malagueta, Perus e Bacanaço -, e com eles trocávamos mais do que dois dedos de prosa. No embalo, podíamos dar uma esticada à casa do veterano e já best-seller Marcos Rey, autor de Entre sem bater, sempre à espera de quem batesse à sua porta para ajudá-lo a convencer a sua mulher, a doce Palma, a liberar a garrafa de uísque que ela escondia do marido. Daí o Marcos Rey receber os seus visitantes aos pulos.

Na cidade que se orgulhava de não poder parar, havia arte para todo lado. E bastou Vinícius de Moraes defini-la como o túmulo do samba, para ela se encher de brios, e passar a importar tudo o que havia de novo ou de velho na música do eixo Rio-Bahia e Nordeste acima. Foi aí que São Paulo fez cessar tudo que a sua antiga musa cantava. Puxados por Franco Paulino, o nosso bem afinado crítico musical, descobríamos Baden Powell – todos os violões havidos e a haver -, João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho, Maria Bethânia, João do Vale...

Nas nossas idas e vindas, podíamos cruzar com o multiartista militante Solano Trindade, que, quando não estava no Teatro Popular Brasileiro ou na Comunidade Artística do Embu, dava o ar da sua graça num restaurante chamado Costa do Sol, na Rua 7 de Abril, em frente aos Diários Associados. Nascido em Recife, o imenso Solano chegou a São Paulo tendo no currículo a criação da Frente Negra Pernambucana, do Comitê Afro-Brasileiro do Rio de Janeiro, e do Grupo de Arte Popular do Rio Grande do Sul – onde, se também não fosse bamba nas artes da capoeira, não teria sobrevivido a uma emboscada num beco escuro de uma gauchada supremacista, como nos contava. Acima de tudo, o que nos encantava nele era a força da poesia do seu recém-lançado livro Cantares ao meu povo, do qual ainda me recordo de versos assim:

Canto de negro dói/ Canto de negro mata/ Canto de negro/ Faz bem e faz mal./ Negro é como couro de tambor./ Quanto mais apanha/ Mais zoada faz.

Ou:

“Trem sujo da Leopoldina

correndo, correndo

parece dizer

tem gente com fome

tem gente com fone

tem gente com fome

piiiiiiiiii”

 

Enquanto corríamos atrás da poesia, da prosa e de tudo o mais que a cidade tinha para nos mostrar, um outro ali nas nossas barbas, que não era necessariamente da nossa turma, pois nunca o víamos num bar, passava para o papel o que vivíamos dizendo que íamos fazer, ainda que nada tivéssemos lhe soprado sobre isso. E foi assim que Ignácio de Loyola, ainda sem o Brandão na assinatura, não demorou muito a fincar o marco zero do seu território de ficcionista: um livro de contos chamado Depois do Sol, no qual tudo acontece em perambulações notívagas por uma São Paulo que já se tornava caótica, desvairada, congestionada, mas onde ainda era possível parar-se na Praça da República, às 4 da manhã, para... conversar.

Lançado em uma tarde de autógrafos estelar, com Cacilda Becker puxando a fila, Depois do Sol esgotou a sua primeira edição em 20 dias, e veio a ter um de seus contos, Ascenção ao mundo de Anuska, transformado em filme (Anuska, manequim e mulher), por Francisco Ramalho, como a confirmar a previsão de Maurice Capovilla: “Tenho a impressão de que Loyola vai ‘virar moda’, mas no bom sentido, como virou moda o samba de Zé Kéti, a voz de Elis Regina, e o Teatro Opinião, porque Depois do Sol vem responder a uma exigência de um público que quer ter uma visão nítida dessa gente alienada e até certo ponto angustiada, que vive em busca de pedaços de felicidade, pela noite adentro”.

Passados quarenta anos da prometedora estreia literária de Ignácio, comemorada em 2005 pela Editora Global com uma edição especial do seu primeiro livro, Cecília Almeida Salles observa que em Depois do Sol já estão delineados os temas que viriam a instigar o seu autor pela vida afora. “Enquanto nesses contos” – diz Cecília – “tudo acontece depois de o sol se por, em outros momentos de sua literatura todos vivem embaixo de raios impiedosos de um sol infinito, como metáfora da insuportável pressão política e social”.

Passo seguinte: o primeiro romance.

Data: 1968.

Título: Bebel que a cidade comeu.

É quando a pegada do autor em processo passa a ficar ainda mais firme.

“Dina se jogou. Nua. O dia acabara e o sol se refletia nos prédios. Ela desceu vertical, depois se inclinou. A tarde era dourada e Dina tinha a cor da tarde. O dourado desapareceu quando ela entrou na sombra dos edifícios. O corpo se depositou na calçada.

Chapado na pedra fria.

Bebel deixou a janela.

Certa manhã, no Ibirapuera, vira o avião tentando furar o telhado em busca do céu.

O dia estava nascendo e o aparelho ficou preso ao teto, despedaçado. E os homens mortos. Ela estava nua no imenso pavilhão, olhando os homens mortos.

- Eu não tenho mais Dina”.

Bebel que a cidade comeu virou Bebel, garota propaganda nas telas dos cinemas, em adaptação do já citado Maurice Capovilla. O filme recebeu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de melhor roteiro cinematográfico.

O ano de 1968 agraciaria Ignácio também – e ao lado da nossa Lygia Fagundes Telles e de Luiz Vilela - com o Prêmio Especial do Primeiro Concurso Nacional de Contos do Paraná, à época o mais disputado do país, ao qual concorreu com três contos: um sobre boxe, uma história de amor e outra, a mais longa de todas, retrata o clima do país em 1964.

Publicados originalmente no volume Os 18 melhores contos do Brasil, os três contos de Ignácio vieram a ter carreira própria no livro Pega ele, Silêncio, hoje em quinta edição, com apresentação de Eder Jofre, o nosso tricampeão mundial de peso-galo e peso-pena. Para ele, a história do boxeador que dá título ao livro é a do povo brasileiro, em suas lutas e derrotas. Quanto ao mais longo dos contos (Camila numa semana), construído ao som de um disco de Nara Leão, numa trama em torno dos dias de tensão e angústia que antecederam e sucederam o golpe militar de 1964, diz Eder Jofre, com muita propriedade: “Loyola viveu na carne aquela época, assimilou os golpes, sem ter sido nocauteado, como muitos foram”. Enfim, um conto recomendável para quem não viveu aqueles dias, para quem os viveu, mas se esqueceu, e, principalmente, para quem duvida deles. Ou os negue.

Depois destes contos cheios de punch, como o campeoníssimo Eder Jofre os definiu, Ignácio iria surpreender a crítica, o público e os censores de plantão com um romance monumental, assombroso em forma e conteúdo, que seria publicado primeiro na Itália, graças à empolgação que despertou em sua primeira leitora italiana, Luciana Stegagno Picchio, então professora emérita da Universidade de Roma, e de quem esta Academia publicou a sua História da Literatura Brasileira, em coedição com a Lacerda Editores. Em depoimento à edição número 11, de junho de 2001, dos Cadernos de Literatura Brasileira, Luciana conta que se encontrava em São Paulo em setembro de 1972 para participar de um Congresso Internacional de Estudos Portugueses e Brasileiros. Eram os anos cinzentos da ditadura militar e a atmosfera do congresso tinha sido triste e extremamente tensa. Quando ela já se encontrava no avião de volta, viu um audacioso sujeito correndo na pista. Era o grande dramaturgo Jorge Andrade, portando um grande pacote, que lhe entregou, desaparecendo imediatamente. Dentro do pacote estavam os originais de um romance de um autor desconhecido – para ela -, Ignácio de Loyola Brandão, intitulado Zero, que leu antes do fim da viagem, intrigada com aquelas páginas cheias, como se fossem urros, de palavras em letra capital, desenhos, gráficos, tabelas. Qualquer coisa, principalmente na altura, de insólito. Quando desembarcou em Roma, Luciana estava convencida de que o livro que acabava de ler, ainda inédito no Brasil, teria de ser publicado o mais breve possível na Itália para que o mundo soubesse não o que acontecia (porque todos deviam saber), mas qual era o clima em que se encontravam os intelectuais do país, a ponto de alcançarem a violência da linguagem e das imagens que ela acabava de ler. O desejo da professora Luciana Stegagno Picchio foi o passaporte para o Zero ter a sua primeira edição mundial em março de 1974, com um grande êxito, que culminou em outras traduções (Cadeiras proibidas, Não verás país nenhum, este aclamado com o Grande Prêmio do Instituto Ítalo-Latino-americano, em 1984).

O resto da história é bem sabido. Zero só viria a sair no Brasil em 1975, pela Editora Brasília, de Lygia Jobim. Em julho de 1976, recebeu da Fundação Cultural do Distrito Federal o prêmio de “Melhor Ficção” – o que não o impediu de ter a sua venda proibida pelo Ministério da Justiça, naquele mesmo 1976, junto com Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca e Araceli, meu amor, de José Louzeiro. Um ano antes, no Teatro Casa Grande, do Rio de Janeiro, durante uma semana, intelectuais, cineastas, teatrólogos, artistas plásticos, professores e escritores se reuniram em amplos debates contra a censura, sob os olhares vigilantes da polícia política. A mesa sobre literatura foi coordenada pelo filólogo Antônio Houaiss, e juntou João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Juarez Barroso, José Louzeiro, Wander Piroli e este que vos fala. A insatisfação com a censura que amordaçava as artes resultou num manifesto com 1.046 assinaturas, levado a Brasília no dia 25 de janeiro de 1977 por Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Hélio Silva e Jefferson Ribeiro de Andrade. Todos os jornais brasileiros estamparam em páginas inteiras a ida da comissão, suas declarações, e publicaram o manifesto. Ainda assim o Zero só seria liberado em 1979. E a censura iria perdurar até 1985, quando foi abolida pelo então ministro da Justiça Fernando Lyra, em ato público realizado no Teatro Casa Grande.

Àquela altura, Zero já estava no mundo – do país de Kim Novak à Coreia do Sul -, e Ignácio corria o Brasil – o que até hoje continua a fazer, em todas as direções –, falando para estudantes, no começo, e mais tarde para os mais variados públicos, sempre cruzando com outros escritores, e descobrindo os falares, usos, costumes e sabores de uma nação heroica em suas batalhas cotidianas, tão amorosamente retratada por ele no livro O mel de Ocara.

No seu incansável ir-e-vir, que o levou aos Estados Unidos, à Nicarágua, à Alemanha – vivendo e escrevendo em Berlim por 16 meses -, por aqui Ignácio foi de Passo Fundo a Macapá, conheceu a Casa Meio Norte, de Teresina, Os Quiosques e Casas de Leitura, de Rio Branco, os Agentes de Leitura de Fortaleza, as Bienais Fora das Bienais em diversas cidades, o Salão do Delta do Parnaíba, e mais e mais, sempre fazendo amigos, conquistando leitores, recolhendo material, recebendo homenagens: Cidadão Piauiense, Cidadão Passofundense, Cidadão Votuporanguense. Em Pirenópolis, Goiás, ganhou a chave da cidade. Em São José do Rio Pardo, São Paulo, um elo de ferro da ponte que Euclides da Cunha ali construiu. E de lá mantém outra recordação sobre a sua mesa: um pedaço perfumadíssimo de uma árvore que caiu aos 130 anos numa fazenda chamada Tubaca. A madeira se chama Myrocarpus Frondosos e era utilizada nos eixos dos carros de bois que cantavam nas estradas.

A sua capacidade de mobilização só não se tornou maior do que a de trabalho, do qual parece nunca se desligar, como demonstra uma carta, de 5 laudas datilografadas, da qual leio aqui um trecho:

São Paulo, 3 de novembro de 1977.

Meu irmão Torres,

Ando dominado por uma invencível vontade de escrever sem parar. Veja só a lista de coisas em andamento:

A – Um semi-romance, mais novela, chamado A CONSTRUÇÃO.

B – Outro romance curto chamado A DESTRUIÇÃO.

C – Reescrever, dar tratamento final a um romance cujo título provisório é A MARQUISE EXTENSA.

D – Retrabalhar uma história que se chama O HOMEM NO TETO. Uma espécie de Robinson Crusoé dentro de São Paulo. Um homem que fica preso no teto de um edifício e ali sobrevive solitário.

E – Uma noveleta sobre um velho político que mandava linchar as pessoas.

F – Uma história curta sobre um pedreiro que só construía ruínas. Ele erguia, trabalhava, trabalhava e quando olhava, tinha feito uma ruína.

H – Retrabalhar uma peça curta moderna, seca, esquisita, chamada A CONFRARIA DOS IRMÃOS DA COSTA, ou Acidentes do Trabalho. A forma desta pecinha foi inspirada no trabalho que o José Celso fez em “Grácias, Senhor”.

I – Um conto curto sobre um ascensorista que se cansa de ouvir as pessoas mandarem nele; o pai mandava. Certo dia ele se rebela e resolve. Dali para a frente, quem entra primeiro no elevador, ele deixa no primeiro andar, o segundo no segundo, e assim por diante.

É uma grande alegria sentir a cabeça fervilhante; é uma grande tristeza não conseguir trabalhar em tudo, ao mesmo tempo, acabar, ver as coisas prontas. De qualquer modo ataco primeiro A Construção, me fixo nela, vai saindo: uma estrada de ferro é construída. Contratam pessoas numa cidade. As pessoas vão para a estação. Recebem uniformes. Vão todos os dias, mas não passa trem. No fim de cada mês, o salário, direitinho. Mas o trem não passa. As pessoas esperam. Nada. Uma neurose geral toma conta: o trem não vem? Passam anos e anos. Um dia, a população recebe um aviso de que a estrada será desativada. Todos perdem o emprego. Meses depois de retirarem os trilhos e fecharem estações e armazéns, a ferrovia aciona todos os ex-empregados para receber de volta tudo que tinha pago.

O que significa esta história que brotou e saiu aos borbotões?

Por que este ritmo infernal?

Ora, respondo-lhe agora, imortal Ignácio de Loyola Brandão: porque, misturando-se à sua imaginação prodigiosa, o feijão catado por Dona Maria do Rosário lhe deu uma energia criadora inesgotável, como é visível (melhor dizendo, legível) em seu mais recente romance, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, em cujas 470 páginas o senhor exibe o fôlego de um Eder Jofre quando jovem, vencendo o leitor por nocaute, a começar por uma perguntinha assim: - Deus, o que você fazia no escuro, antes de criar o mundo, se é que foi você que o criou? E por que criou?

Não, não somos a geração que ao tornar-se adulta encontrou todos os deuses mortos, todas as guerras terminadas e toda a fé do homem abalada. O senhor escritor Ignácio de Loyola Brandão continua a nos dar um exemplo de fé... Nas teclas. E nelas, catar palavras é a sua guerra diária. Uma guerra que lhe deu 45 motivos para considerar-se um vencedor. E nos prova que lutar com as palavras nem sempre é a luta mais vã.

Bastava a trilogia iniciada com o clássico Zero, que já atingiu a espantosa marca de 35 edições, seguida por Não verás país nenhum – um milhão e meio de exemplares vendidos, precisa dizer mais? -, e fechada com o romance épico-distópico Desta terra nada vai sobrar para lhe garantir a cadeira que foi ocupada nesta Casa por intelectuais da estatura de Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Hélio Jaguaribe. Mas, se dependesse só do voto deste seu leitor, Ignácio não precisaria ter escrito mais do que o felliniano A altura e a largura do nada, uma viagem de volta a uma Araraquara que tinha personagens como o homem que escreveu o maior número do mundo, o padre que enlouqueceu com o strip-tease de Rita Hayworth, o dia em que Sartre e Pelé se encontraram naquela cidade sem se verem, a trajetória do araraquarense José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, o brilhante Zé Celso de quem adapto um verso e transcrevo outros pinçados de um longo poema que ele dedicou ao seu igualmente ilustre conterrâneo:

Ignácio, santificado nesta noite tão linda!

Ignácio, graças aos deuses, nunca foi santa.

Mas o fervor profético bíblico que dedicou à sua dádiva suprema,

a língua, lambeu o avesso do mundo e fez dele uma santeria escrita,

produzindo eternidade de momentos e de coisas presentes

na nossa cara, que não vemos,

e que ele faz ignascer dentro de nós, em contato com os vestígios impressos de sua diversão de mundo.

Imensurável escritor Ignácio de Loyola Brandão, amigo, irmão, companheiro de tantas jornadas literárias, de Aracaju a Frankfurt, de Campos dos Goytacazes a Araxá, de BH a Araraquara - a Morada do Sol, ou Toca das Araras -, onde um dia tive o privilégio de ser recebido, com as bênçãos de seu Totó, as suas próprias e a dos seus irmãos Luís e João, e na mesma mesa onde Dona Maria do Rosário lhe ensinou a catar palavras:

Cá nos reencontramos.

Na Casa de Machado de Assis - que agora também é sua, de fato, direito, merecimento, justiça.