A propósito da coluna de domingo, em que analiso a correlação de forças entre Executivo e Legislativo, com base em um pronunciamento do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Antonin Scalia, o professor Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, um dos melhores especialistas em legislação eleitoral, autor do livro “O Voto no Brasil”, relembrou um diálogo tirado de Saul K. Padover em “A Constituição Viva dos Estados Unidos”, entre George Washington e Thomas Jefferson, dois dos “pais fundadores” dos Estados Unidos.
Jefferson voltara de Paris quando, em uma manhã, à mesa com Washington, lhe perguntou por que havia favorecido o Senado na convenção.
- Por que, rebateu Washington, derramaste esse café no pires?
- Para esfriá-lo, explicou Jefferson.
- Muito bem, prosseguiu Washington, nós derramamos a legislação no pires senatorial para esfriá-lo.
Também o cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas no Rio, analisou a fala de Scalia e considera que ela não pode ser usada em relação à situação brasileira, já que, diferentemente dos EUA, o presidencialismo brasileiro opera em um ambiente multipartidário e, nos últimos anos, hiper-fragmentado. Embora tenha, como elogia Scalia em relação aos Estados Unidos, duas Casas Legislativas fortes.
Além disso, ressalta Pereira, “com um Executivo extremamente poderoso, também diferente do caso americano, onde o presidente é constitucionalmente fraco”. Quando o presidente americano tem a sorte de sair das urnas com seu partido ocupando a maioria de cadeiras nas duas casas legislativas, o sistema opera de forma muito similar ao parlamentarismo europeu, sem separação de poderes e, portanto, sem gridlocks (impasses).
Os “problemas” (ou virtudes, para Scalia) aconteceriam apenas nas situações de governo dividido, quando o partido do presidente não desfruta de maioria em uma (situação atual) ou nas duas casas legislativas. Para Carlos Pereira, o multipartidarismo opera como um controle endógeno de um Executivo constitucionalmente forte, mas ao mesmo tempo minoritário no Legislativo, o que o obriga a montar e a gerenciar coalizões multipartidárias pós-eleitorais se quiser governar.
Daí porque, sem “moedas-de-troca” capazes de gerar ganhos mútuos para o Executivo e o Legislativo, os riscos de gridlocks (impasse) quase que seriam permanentes, inviabilizando assim o funcionamento virtuoso do jogo.
Na análise do cientista político da FGV-Rio, “quando impasses entre o Executivo e o Legislativo ocorrem de forma episódica, eles podem qualificar e dar sustentabilidade à democracia, como argumenta Scalia. Entretanto, a convivência quase que cotidiana com gridlocks pode gerar não apenas paralisia decisória, mas instabilidades de toda sorte, tornando o jogo imprevisível com a formação de maiorias cíclicas e instáveis”.
O grande problema do nosso presidencialismo multipartidário, para Carlos Pereira, a princípio, não seria a “troca-de-favores”, mas a não institucionalização e a falta de transparência do que está sendo trocado. “A moralização e/ou a demonização dos ganhos de troca só torna o jogo do presidencialismo multipartidário muito mais complicado e cheio de armadilhas tanto para os governantes como para os eleitores.”.
Carlos Pereira analisa o caso do governo Bolsonaro. “Fez uma campanha de demonização do presidencialismo de coalizão, e criou uma armadilha para seu governo, pois ao atar suas próprias mãos com promessas de uma “nova” política com os eleitores, não teve condições (“preferiu”) de montar uma coalizão majoritária, estável e com bases partidárias”.
Restaria governar com coalizões fantasmas, que se formam e desaparecem a cada votação, maiorias cíclicas e instáveis, que ao fim e ao cabo vão se revelar mais caras e menos bem sucedidas. Governos minoritários e plebiscitários, como se desenha o governo Bolsonaro, tendem a ter fôlego curto, alerta Carlos Pereira. “Impasses dessa natureza levam à insolvência de governos, que tendem a não completar seus mandatos”.