O anúncio do decreto ampliando o acesso dos cidadãos às armas de fogo é daqueles fadados a provocar polêmica, embora não possa ser atribuído a uma decisão arbitrária do presidente Jair Bolsonaro, que passou a campanha eleitoral defendendo o que ontem cumpriu.
Ele foi eleito por muitos por causa dessas promessas, e muitos outros que votaram nele o fizeram apesar disso. Pesquisas mostram que a maioria da população hoje seria contra, mas o referendo realizado em 2005, que deu vitória aos que não queriam a proibição de venda de armas de fogo, é a base legal para o decreto, que só veio regulamentar a decisão referendada pela maioria naquela ocasião.
O resultado foi surpreendente `a época, assim como a campanha presidencial de Bolsonaro foi surpreendente agora, com receptividade a promessas como a flexibilização da posse de armas. Mas essa promessa cumprida não quer dizer que a promessa maior, de um plano de segurança que abranja o território nacional como um todo para combater o crime organizado, tenha sido apresentada.
A liberação de armas de fogo é uma resposta a um nicho eleitoral de Bolsonaro, ligado à classe média urbana e às que vivem em áreas rurais desprotegidas, além do cidadão comum que considera que estará mais protegido agora.
Há estudos que mostram que as armas de fogo são as maiores responsáveis por mortes, e a legislação dos Estados Unidos, extremamente flexível quanto à compra de armas, mostra isso, de acordo com Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé, ONG dedicada ao estudo da violência.
As leis domésticas que regulam as armas fazem a diferença quando reduzem a possibilidade de compra por cidadãos que vão fazê-las parar nas mãos de terceiros. Um estudo de 2007 mostra que esse tipo de compra, permitido por lei em muitos estados, é mais comum naqueles que têm legislação mais branda, como Arizona, Flórida, Nevada e Texas.
Ao contrário, na Califórnia, cuja regulamentação limita o porte de arma em público e requer checagem para todas as transferências de armas de fogo, a ocorrência de crimes ligados à armas de fogo é menor
Bolsonaro costuma dar o exemplo dos Estados Unidos que, muito liberal com relação à venda e porte de armas, tem índices de criminalidade baixos se comparados com o Brasil. No entanto, os números são enganosos, pois os EUA é um país violento, com a maior população carcerária do mundo.
E os assassinatos em massa que vemos frequentemente certamente são decorrentes dessa liberalização. Em Nova York, por exemplo, onde a legislação local não permite portar armas em público, o índice de criminalidade tem sido reduzido.
O baixo índice de criminalidade é fruto de uma política nacional de repressão severa, o que não indica que o país não seja violento. Os índices de criminalidade nos EUA são maiores que o dos países ocidentais mais avançados como na Europa e no Japão.
Na América Latina estão os 18 dos 20 países com maiores índices de homicídios, e 43 das 50 cidades mais violentas do mundo. Por volta de 75% de todos os homicídios na região são relacionados a arma de fogo, enquanto o índice mundial é de 40%.
Por outro lado, um trabalho publicado no Harvard Law Journal and Public Policy em 2007 defende a tese que países que têm mais armas tendem a ter menos crimes.
Segundo ele, ao longo dos últimos 20 anos, as vendas de armas dispararam nos EUA, mas os homicídios relacionados a armas de fogo caíram 39% durante esse mesmo período. Mais ainda: "outros crimes relacionados a armas de fogo" despencaram 69%.
O trabalho é assinado Don B. Kates and Gary Mauser, o primeiro um dos mais proeminentes criminologistas americanos, defensor da Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos que baseia o “ direito fundamental à auto-defesa e o direito individual de possuir uma arma para tal fim”.
Já Mauser conduziu pesquisas sobre a efetividade de politicas de controle de armas. O estudo dos dois, que serve como base em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, para os defensores da liberação do posse de armas, foi contestado por David Hemenway, diretor do centro de pesquisas de controle de ferimentos de Harvard, que o acusa de ter ignorado a maioria da literatura científica e fazer “muitas incorretas e ilógicas ilações”