Senhor Elmano Cardim,
Recordei, há tempos, em vosso jornal, um episódio de vida familiar, que Álvaro de Castro Meneses gostava de narrar. Castro Meneses, promotor público e poeta – ou antes, poeta e promotor público – ou redator do Jornal do Commercio, onde escrevia “quadros de guerra” e debatia questões econômicas, zarolho e capenga, fulgurante de inteligência, exuberante de vida e de alegria, com suas gargalhadas estrepitosas, a gesticulação derramada, a loquacidade inextinguível – contava que, na tranqüilidade do lar, rodeado da família, um velho almirante reformado se lamentava de não haver prestado à Marinha, e ao Brasil, os serviços de que se considerava capaz. Então, alguém, com intuito de consolá-lo, ponderou: “Mas, você ainda os pode prestar...” O almirante refugou: “Ora essa! se estou reformado...” Insistiu o outro: “Pode reverter, pode ser chamado à atividade – como o Jerônimo Gonçalves e o Jaceguai; mesmo reformado, pode até ser ministro: olhe o Baltasar da Silveira.”
Foi pior; o almirante mostrou-se mais desalentado: “Isso não é para mim; você caçoa comigo: eu, ministro!...”
O parente, que pretendia confortá-lo, reafirmou: “Pois é isso mesmo! e você seria um grande ministro...”
Apoiaram-no os demais presentes. Por sua parte, o almirante reiterou a negativa. Acalorou-se a divergência. Quando amainou, num momento de silêncio, a velha irmã do almirante, que habitualmente cochilava na cadeira de balanço, nessa noite tendo-se interessado pelo debate, proferiu, serenamente, algumas palavras animadoras:
– É sim, meu irmão, outros piores têm sido...
Traduziram tais palavras o estímulo implícito, despercebido, decisivo, de toda a gente de nosso tempo. Fixaram a secreta convicção generalizada. Os mais altos postos do governo, das academias científicas ou literárias, os cargos técnicos, os de mais graves responsabilidades – tudo todos podem cobiçar, encorajados pela mesma consideração intima: outros piores têm sido...
Ora, na carta protocolar em que me anunciastes vossa candidatura à Academia, recordando meu pequeno artigo no Jornal, procurastes justificá-la com a frase da velha e bondosa parenta do almirante desalentado. Escrevestes apenas: “outros piores têm sido...”
Tínheis, no entanto, incentivos maiores. Bastaria o que vos deu, nesta mesma sala, da mesma tribuna que ocupastes há pouco um dos nossos, um dos que, por todos os motivos, mais autorizadamente poderiam falar em nome da Academia. Bem vos recordais de que, há quase cinco anos, Afrânio Peixoto, em plena sessão comemorativa de Félix Pacheco, acentuou que “sempre a imprensa nos trouxe acadêmicos”, acrescentando que não via ninguém pelo Jornal do Commercio. Isso – que já não é pouco – é o que consta de nossos anais. Se me não falha a memória, as palavras proferidas foram mais explícitas e vos mencionaram nominalmente; ou, pelo menos, o orador lhes revelou o alcance, dirigindo-se a vós, quando as enunciava.
Em verdade, Afrânio Peixoto, sempre fascinante na variedade múltipla das suas expansões, intolerante com os deslizes de caráter e com o que supunha deslizes de caráter, era da maior indulgência, por vezes excessiva, com as veleidades literárias. Ninguém, como ele, gostava de encorajar qualquer aspiração à Academia. Não creio, porém, que não tivesse certa malícia íntima, recalcada, quando espicaçava pretensões mal dissimuladas, dizendo ao seu interlocutor, com inteira naturalidade, a segurar-lhe um botão do paletó: “A Academia está à sua espera...”
Convosco, não foi assim. Não fez apenas isso. Chegou a ser provocador. Lançou o pregão público de vossa candidatura – num gesto sem precedente, capaz de transformar qualquer cabeça menos estabilizada que a vossa.
Demais, ao tempo, havia sete anos, tínheis já subido a essa mesma tribuna e falado, como sempre enternecidamente, do vosso e nosso Félix Pacheco. Nessa ocasião, com a inequívoca emoção do enamorado, destes à Academia o epíteto enfático de “Cenáculo magnificente”. Não sois, agora, um estreante na tribuna deste “Cenáculo”... “magnificente”.
Vossa candidatura, legítima por tantos títulos, aguardada, encorajada, foi, por vós mesmo, retardada durante longos anos.
Ouvistes, e guardastes, as palavras de Afrânio Peixoto, e outras, do mesmo sentido, que vos foram ditas em ocasiões diferentes, sem publicidade.
Não ficastes, por certo, desinteressado da sugestão. Preferistes, contudo, esperar. Soubestes fazer-vos esperado. Preparastes um nutrido volume de conferências. Quisestes que alguns raros, quase invisíveis, fios prateados tentassem, em vão, contradizer o aspecto magnífico de vossa persistente mocidade.
Por fim, quando vos decidistes, conseguistes, com facilidade, uma vitória incomparável: não tivestes competidor; lograstes a unanimidade dos sufrágios, com a só restrição de um voto em branco, da quase unanimidade dos acadêmicos, ultrapassando em muito os mais altos números até então apurados.
Se a nossa douta e operosa Comissão de publicações organizar, como desejo, um “manual do perfeito candidato à Academia”, a fim de excluir certas inconveniências que, não raro, cometem pretendentes ansiosos, há de caber-vos, nessa obra, o encargo de redigir as advertências contra a sofreguidão.
Todavia, nem só por terdes sabido a ela resistir obtivestes o triunfo assinalado. Motivaram-no vossos merecimentos, notórios e proclamados, e outros, menos divulgados e aparentes. Entre uns e outros, ao delinear-vos o perfil moral, não incluo, com sinceridade vos digo, precisamente aquele de que vossa atitude pareceria resultante: a modéstia. Permito-me dizê-lo, pois nas academias nem ela vale muito.
Nesta, em que ingressais, com o fardão aparatoso, a insígnia enganadoramente pretensiosa ad immortalitatem – se não está de todo proscrita, ao menos não se lhe faz propício o ambiente. Nem posso esquecer que um acadêmico insigne me revelou certa conceituação da modéstia, que talvez seja, ou venha a ser também a vossa.
Era uma vez, em Petrópolis, numa bela tarde estival, Fernando Magalhães, o nosso sempre lembrado Fernando Magalhães. Apresentou-me ele um “álbum de pensamentos” – um desses aterradores álbuns de pensamentos, em que tantas vezes cada um de nós é aqui solicitado a exarar algumas palavras conceituosas. Fernando fez-me ler uma página manuscrita, cobrindo-lhe a assinatura com a mão espalmada. Li mais ou menos isto: o general modesto é o general que perde todas as batalhas; o médico modesto é o que vê morrerem os seus clientes; o advogado modesto é o vencido nas causas que patrocina; o escritor modesto é o de que ninguém lê os livros; o engenheiro modesto é o que constrói edifícios ou pontes, que se esboroam... E não sei mais quê, por aí afora; em suma, a modéstia companheira do mau êxito. Fernando Magalhães seguia-me à leitura com o olhar radiante, aquele seu magnífico sorriso a desabrochar-lhe na face rosada. Quando terminei, sem retirar a mão de sobre o livrinho, perguntou-me: “De quem é?” Eu estava a reconhecer a escrita clara, límpida, igual, sem conseguir fixar um nome. Por fim, Fernando Magalhães levantou a mão e deixou-me ler a assinatura: Miguel Couto. Sim, Miguel Couto, o grande e nobre homem de pensamento, de ação e de sentimento, que toda a gente sabia inexcedivelmente modesto.
Estareis, pois, em boa companhia, não sendo modesto – até porque, para o não serdes, basta que sejais, como sois, um escritor bem lido, um jornalista vencedor das campanhas em que se empenha.
Se vos não embriagam as vitórias, delas decorre outra razão, excludente de vossa modéstia: é que sois um homem afortunado, merecidamente afortunado. Bem sei, por força do meu ofício, que sois titular de um cartório judiciário, um desses cobiçados cartórios que, por via de regra, cabiam somente a revolucionários triunfantes, a paredros previdentes que se encaminhavam para o ostracismo, ou a parentes, ou amigos do peito, de uns ou de outros. Acima dessa, fruís outra felicidade que contrasta com essa, maior, mais recatada, mais invejável, que vos permite ter aqui, partícipe de vosso triunfo, a vossa nobre progenitora. E como sabeis prezar a felicidade que vos cabe, tornastes vossa festa acadêmica um episódio da que ela mesma hoje celebra e lhe dais o melhor brinde de aniversário, na alegria de viver conosco esta breve hora.
Não sendo modesto, tendes discrição, medida, bom gosto, sentido de oportunidade – a que pode parecer modéstia e, afinal, vale mais que a modéstia.
Dessa feição de vossa personalidade, que ditou a norma de vossa vida, resulta outra aparência – a de facilidade de vossa ascensão profissional. Chegastes a um posto culminante na imprensa brasileira, chegastes a esta Academia – sem meter os cotovelos, para abrir caminho, sem a imoderada satisfação dos arrivistas, antes com certo ar de indiferença tranqüila. Repetistes, em prosa, o verso de Félix Pacheco, dizendo que vossa vida era “uma ascensão vagarosa, mas constante”. Assim continuou, menos vagarosamente do que teríeis considerado.
Nascido em terra fluminense, como tantos de nossos maiores jornalistas de todos os tempos – Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio, Alcindo Guanabara, o próprio José Carlos Rodrigues – fostes educado em Minas Gerais. Ali tereis haurido, no convívio da gente mineira, alguma coisa da suave, discretamente maliciosa, condescendência com as fraquezas humanas. Mais tarde, nesta cidade, vos fizestes bacharel em Direito.
Um de vossos colegas de turma, falecido sem renome, traçou-vos o perfil, em versos toscos, que merecem recordados, porquanto, se não fariam jus a prêmio desta Academia, bem mostram que, em 36 anos decorridos, não perdestes as características fixadas pelo poeta:
Nesse apuro de traje americano,
A falar seu francês corretamente,
Do jornalista nessa luta ingente
Eis a figura do colega Elmano.
Ainda no terceiro ou quarto ano
Percorreu todo o velho continente,
Nas velhas pátrias dessa antiga gente
Estudando o poder do gênio humano.
Veio amando a mulher parisiense,
O conjunto da graça resplendente
Que arrouba os corações, deslumbra a vista.
Vê-se, pois, que tem jeito e que tem gosto,
Que é moderno o rapaz, em cujo rosto
A beleza estampou traços de artista.
Antes disso, havíeis ingressado na imprensa, como revisor, num jornal, depois noutro, por fim – há mais de quarenta anos como repórter, no Jornal do Commercio.
Intercorrentemente, fostes oficial de gabinete de nada menos de seis Ministros de Estado – de um dos quais, e dos mais conspícuos, sereis aqui companheiro. Tão prolongada permanência na delicada função revela outro traço de vossa personalidade. Contou-me nosso querido confrade Sr. Hélio Lobo que o então presidente da República, ao convidá-la para secretário da presidência, acentuara que precisava de um homem que soubesse dizer “não” parecendo que dizia “sim”. Traçou, nessas palavras, a psicologia do secretário ideal. Vós a realizais – pela amenidade do trato, pela indulgente paciência com que sabeis suportar as caceteações mais arrasadoras, por essa rara capacidade de edulcorar as negativas.
Ao falar desses dotes, ligados à vossa afetividade, envolvente sem derramamento, ocorre-me que um colega vosso chegou a chamar-vos “irmão”. Referiu, depois, que alguém se surpreendera: “Como? não sabia que era seu irmão”. Então, foi o primeiro quem se fez de surpreso: “Não sabia? pois você não sabe que ele é “el mano?...” Desde a pia batismal, dando-vos esse prenome adocicado, na forte, amorosa língua castelhana, se teria pressentido, a um tempo, vosso espírito de fraternidade e certa preferência literária, confirmada ainda agora pelas reminiscências do Quixote e de Gil Blas, que ornaram vosso, discurso...
Subistes de revisor de provas à mais alta posição no grande jornal – repetindo a proeza de Félix Pacheco que, de repórter de polícia, chegou a diretor, e, também, com variantes, a de quase todos os que vos precederam nesse cargo.
Assim tem sido, graças, antes de tudo, à permeabilidade, à instabilidade de nossa organização social.
Não temos famílias privilegiadas que monopolizem, permanentemente, as posições mais altas. Ao contrário, há um renovamento contínuo, de pronto imperceptível. Dos apelidos das grandes famílias do primeiro Império, pouquíssimos se destacarão, ainda agora, no cenário político, ao passo que, na América espanhola, apesar das agitações revolucionárias, hoje como há cento e quarenta anos, fulguram os nomes dos Pueyrredon, dos Cisneros, dos Errazuriz, dos Riesco, dos Varela, dos Calderón, dos Restrepo e tantos outros.
Na relação dos membros de nosso Congresso Nacional, quase não aparecem sobrenomes de titulares de altas posições no Império, ou nos primeiros tempos da República. Na esfera econômica e financeira, tem passado de mão em mão o predomínio: nossos milionários atuais são, quase todos, nouveaux riches, enquanto descendentes dos maiores ricaços do Império lutam com dificuldades de dinheiro. No campo cultural, vão predominando nomes novos, muitos de acento estrangeiro. Há pouco, dos seis professores que compunham a comissão examinadora de concurso na Faculdade Nacional de Medicina, cinco tinham nomes italianos. A não ser nas forças armadas – os apelidos de família modificam-se, quase por completo, dentro em curtos períodos.
Também em vosso Jornal, não vejo, em posição saliente, nenhum Plancher, nenhum Villeneuve, nenhum Picot, nenhum Rodrigues, nenhum Botelho, nenhum Pacheco... Por outro lado, nunca ali sobrelevara algum Cardim. Essa é, todavia, uma casa de tradições arraigadas. O Jornal tem conservado sua feição inconfundível, até materialmente – sem epígrafes sensacionais, sem gravuras, quase sem versos, bem arrumado, cada coisa com o seu lugar certo; as mesmas seções – “gazetilha”, “várias notícias”, “publicações a pedido”; a mesma atitude habitualmente serena, reservada, prudente.
Em meio da agitação de nossa vida pública, o Jornal do Commercio tem-se tornado um ponto de segurança, um rochedo que não cobrem as ondas encapeladas, um esteio de nossa nacionalidade.
Vós mesmo dissestes, com acerto, que ele “timbra em perdurar, como força conservadora na vida do País, sem deixar-se contaminar, ou influenciar pelo prurido das novidades, ou pelo ridículo das macaqueações, contrárias à nossa índole, à nossa formação e à nossa raça”. Ainda há pouco também vos ouvíamos dizer: “Conservar não é sinônimo de estagnar, antes melhor se preserva o que se adapta e se atualiza.”
Como tem podido manter-se, desse modo, o Jornal, em meio da trepidação de nossa vida social e política? Em virtude do “espírito de continuidade”, em que Félix Pacheco tanto insistiu; porque, ele, vós mesmo, todos os outros antecessores vossos chegaram à direção suprema depois de ambientados profundamente, penetrados das tradições ali dominantes, quase sempre tendo servido, por longos anos, em situações inferiores.
Sem dúvida, cada diretor realiza algumas alterações e reformas – gradativamente, sob o império de exigências ocasionais ou de circunstâncias variadas. As maiores inovações, empreendeu-as José Carlos Rodrigues, que aliava à larga experiência do jornalismo norte-americano a condição de antigo correspondente do Jornal, nos Estados Unidos, durante um quarto de século.
Félix Pacheco avançou e consolidou essa obra. Por morte dele, surgiria uma dúvida inquietante: a que mãos iria parar o grande quotidiano? Parecia impossível que a desolada viúva se animasse a conservar o domínio da empresa. Alvoroçaram-se pretendentes. Por fortuna, soube a Sra. Dora Pacheco resistir à sedução mais ou menos tentadora das propostas oferecidas e arrostar os riscos do encargo oneroso; soube escolher em vós, por vosso longo tirocínio na casa, por vossa fidelidade ao diretor extinto, por vossos dotes pessoais, o homem a quem confiar o posto vago; soube, assim, manter a tradição fundamental. E porque vos teve à mão, pôde frustrar as pretensões dos estranhos, que ambicionavam a posse da preciosa instituição.
Dezesseis anos passados, o Jornal do Commercio, mais forte que nunca, mostra o acerto da escolha. Tendes sabido comprová-lo. Conservastes as tradições, que tivestes o declarado propósito de manter, progredindo e inovando. Acolhestes jovens escritores modernistas. Criastes, há poucos dias, uma larga “página feminina”. Sem querer mencionar todas as vossas iniciativas, recordarei que tivestes a intrepidez de adotar a ortografia do acordo interacadêmico. Não o fizestes, porém, sem uma longa “vária” justificativa da mudança e para fazer as coisas como ali se devem fazer – conservastes, no cabeçalho da primeira página, as consoantes geminadas da palavra “Commercio”, que o mesmo acordo condenara. Teríeis receado que, impresso o título Jornal do Commercio com um só m nesta última palavra, lhe ficasse profundamente alterada a fisionomia mais que secular...
Rui Barbosa – precisamente em discurso proferido no banquete que lhe ofereceu o diretor do Jornal do Commercio, à sua volta do exílio – se definiu – e repetiria, noutras palavras, a definição – “um liberal de molde conservador, um amigo do progresso pela reforma, um incrédulo na eficácia das revoluções”. Tem sido essa a orientação política do Jornal do Commercio, a linha por ele indefectivelmente seguida, a característica reiterada dos que o têm dirigido; essa é a vossa própria mentalidade.
Tem sido, de certo, influenciada vossa formação psicológica, pelo ambiente do Jornal, em que viveis desde a verde juventude à sazonada maturidade; no entanto, o ambiente apenas acentuou e avigorou as características de vossa personalidade – 'ponderação, serenidade, objetivismo, constância, espírito a um tempo conservador e liberal. O Jornal do Commercio e vós mesmo sois como aqueles cônjuges que, depois de longos anos de convívio, transfundem, de um a outro, traços fisionômicos e características psicológicas. Tanto vos assemelhais, um e outro, que se poderia duvidar da exatidão de vosso registro de nascimento ao atribuir-vos menos da metade da idade ultracentenária do Jornal.
Falei das mutações, da descontinuidade das famílias predominantes em nossa organização social e política. Ao mesmo fato se deve ligar o das inopinadas reformas políticas. As maiores, as mais graves, as de maior repercussão temos feito, pacificamente, sem perda de vidas e de sangue (do que tanto, e tão justificadamente, nos orgulhamos) e, também, talvez por isso mesmo, sem a preparação imprescindível. A sedução das grandes reformas liberais tem-nos levado a fazê-las de afogadilho, sem a prévia preparação, que exigem quase sempre. Fizemos a Abolição da escravatura, de chofre, sem indenizações, não tendo organizado o crédito agrícola, nem o trabalho livre. Instituímos o voto secreto, sem extinguir o analfabetismo, nem o semi-analfabetismo. Estabelecemos as medidas de abrandamento das penas criminais – livramento condicional, suspensão da condenação – sem criar órgãos de fiscalização do procedimento dos liberados. Limitamos as horas de trabalho do operariado, sem cuidar das de repouso, de recreação, de estudo. Por igual, a República e a Federação...
Não podíamos, decerto, prescindir dessas conquistas, nem retardá-las por mais tempo. Pagamos, porém, estamos pagando, demasiado caro, cada uma dessas realizações beneméritas. A Abolição lançou-nos em uma crise econômica, grave e prolongada; o voto secreto acarretou a incerteza dos destinos da Democracia; o abrandamento das penas estimula a criminalidade; a legislação social diminui, e encarece a produção. Reduzimos, pois, os benefícios dessas inovações; criamos, desnecessariamente, novos problemas, novas dificuldades, em que nos debatemos.
Para essas e outras reformas, demoradas, por algum tempo e, de súbito, precipitadas, terão contribuído – acaso, com as melhores intenções do mundo – reclamos dos impacientes e dos irrequietos. Em meio deles, o Jornal do Commercio chega a parecer reacionário.
Seu espírito conservador não é, porém, rotineiro, antes inovador e progressista, com oportunidade e medida, conjugando forte sentimento nacionalista e patriótico ao interesse por todas as conquistas da civilização e da cultura, que nos beneficiem.
Sou, sempre fui, dos que gostam de jornais; dos que não podem passar sem eles; dos que os esperam cada manhã, com a ansiedade de quem conta ler uma grande noticia favorável a seus interesses, a seus caprichos, ou a sua vaidade.
Somente o jornal destaca o curso de cada dia na voragem das semanas, dos meses, dos anos, dos séculos. Quebra a seqüência ininterrupta do tempo, realçando as personagens dos episódios, iguais, sempre os mesmos, repetidos dia a dia: nascimentos, matrimônios, mortes, crimes, livros, fitas de cinema, peças de teatro, atos do governo... Tudo é sempre a mesma coisa. Variam somente autores, protagonistas, comparsas. Ninguém perceberia tantas mutações secundárias, se o jornal lhes não desse relevo – ainda que momentâneo, efêmero. O jornal reveste cada dia de uma feição nova, de novas emoções, de colorido distinto. Sem ele, mergulharíamos na mais desesperadora monotonia.
Somente o jornal outorga um momento fugaz de restrita celebridade a numerosos anônimos, a todos os que vão cair no anonimato da posteridade: o retrato, o nome em letras graúdas, os adjetivos amáveis.
Vosso jornal, avesso ao sensacionalismo, faz, no entanto, uma concessão aos famintos de celebridade, de que somente ele é capaz. Somente ele pode acolher os maiores discursos, as mais estiradas conferências, os noticiários minuciosos das mais variadas associações. É o maior desafogo da fecunda literatura indígena. Na imensidade de suas colunas, de tipo miúdo, cabem as mais vastas composições: até ficam minguadas. Este mesmo discurso – e o vosso e tantos outros! – somente naquelas colunas poderiam ter publicidade integral. Nem só por isso, todos os que aqui estamos e, fora daqui, em todo o Brasil, escritores de todas as categorias, teremos sido, mais ou menos largamente, mais ou menos freqüentemente, colaboradores do Jornal do Commercio.
Nem só por isso se ligam a Academia e o Jornal; também porque uma e outro servem de contrapesos do equilíbrio social – e até por certa coincidência menos aparente.
Condenando ao anonimato os que o fazem, o Jornal pressupõe em seus redatores, deles exige, uma vocação, uma capacidade rara em nossa gente e em nosso tempo: a de servir coletivamente, sem dar nas vistas, a uma obra duradoura, quiçá eterna, que ultrapassa, absorve, consome a personalidade e a vida de cada um dos seus servidores. Também esta Academia há de ser assim, assim havemos de servi-la. A imortalidade, a que aponta, não é dos que, transitoriamente, por ela passam e a servem; somente a própria Academia é imortal e eterna. Os que a ela vêm, de vosso Jornal, vêm, pois, de boa escola.
Deixastes, de bom grado, que o Jornal vos absorvesse. Dir-se-ia que escrevestes pouco, poucos livros publicastes. Nas colunas do Jornal, esparso, em grande parte sem identificação possível de autoria – está o mais que tendes escrito e bastaria para encher muitíssimos volumes. Vossos escritos diluem-se naquele oceano imenso. E tendo de falar de vós, demoro-me a falar do Jornal porque, em sua fase atual, ele é vossa melhor obra, vossa grande obra, a de que, por não serdes modesto, vos envaideceis...
Nenhum dos vossos companheiros que passaram por esta Academia, foi mais dedicado ao Jornal, mais identificado com o Jornal, mais exclusivamente Jornal do Commercio, que vós mesmo. Félix Pacheco era político, parlamentar, Ministro de Estado, poeta; Victor Viana e Constâncio Alves, funcionários públicos; João Luso, cronista de vários jornais e revistas. Vós não: tudo é, para vós, o Jornal do Commercio – e, por ampliação, a imprensa. Estais, agora, a dirigir uma grande e benemérita obra de assistência social; tendes as preocupações teóricas daquele cartório, que já recordei. Tudo isso é muito pouco em o conjunto de vossas atividades. Homem de imprensa, todas as vossas obras, vossas conferências que se não sumiram no pélago daquelas folhas versaram temas que a ela se referem. Estudastes a vida e a obra de Rui Barbosa, de Joaquim Nabuco, de Rio Branco, de Machado de Assis, como jornalistas; do próprio Jornal do Commercio e daquele que foi, para vós, como para mim mesmo, o seu diretor inesquecível – Félix Pacheco; delineastes a tarefa do publicista no mundo moderno; falastes da liberdade de pensamento e da liberdade de imprensa como garantia da paz.
Discípulo e amigo – o melhor dos discípulos, um dos melhores amigos, de Félix Pacheco – nunca dissestes, nem poderíeis dizer, como ele, favorecido dos deuses, disse, com amargura: não há profissão mais ingrata, nem mais difícil, e o menos que o jornalista sofre, pelo conhecimento da sociedade, é a perda das suas ilusões...
Ao contrário, considerais que, “desde a Grécia de Platão, como no mundo atual”, a tarefa dos publicistas consiste em “combater os sofistas e defender os filósofos, verberar a injustiça e preconizar o Direito, pugnar pela razão contra a tirania, buscar fazer da cidade imperfeita uma cidade perfeita”.
Confiais plenamente, piamente, na possibilidade e no bom êxito dessa empresa de Hércules. Quando – agora, com mais freqüência, bem justificada – lançais, em uma “primeira vária”, advertências ou admoestações, sente-se que vos domina inteira confiança na repercussão, que vão ter. Sem essa confiança, um pouco ingênua, que tendes em alto grau, nenhum jornalista se devota à sua missão.
Não reduzis, porém, a uma só modalidade a missão do Jornalismo. Compreensivo e benigno, reconhecestes que os homens de imprensa têm de fazê-la “para uns e para outros, para os que correm e para os que pensam”. Por vossa parte, continuais empenhado em fazê-la para os que pensam.
Jornalismo soma Literatura e Política. Teria razão Ernest Renan, quando enunciou o conceito que recordastes: “Tout devient littérature quand on le fait avec talent.”
Agora, já não é assim. Juliano Benda, procurando, fixar o conceito atual de Literatura, mostrou que ela recusa as “idéias nítidas”, prefere as nuanças e os conceitos fluidos; deixa-se dominar pela “fúria do misticismo”, gosta das obscuridades, desdenha a linguagem. Tudo isso é o contrário do Jornalismo.
Mesmo assim, nele ainda se observa, por vezes, a dosagem daqueles dois elementos (ainda que o literário, em regra, não obedeça à conceituação atual), variáveis conforme as circunstâncias. Sem dúvida, tende a preponderar o elemento político. Há mais de trinta anos, desde a Primeira Guerra Mundial, preocupações de ordem política avassalam, cada vez mais, todos os espíritos. Cada vez mais, todos nos embrenhamos nos meandros da Política, da politicalha, até porque neles se decide da nossa pele e dos nossos destinos. Cada vez mais, não sobra aos jornalistas tempo para fazer Literatura – nem o toleraria grande parte dos seus leitores.
Um autêntico homem de imprensa, devotado de corpo e alma ao seu jornal, como vós, não pode, portanto, fazer Literatura, no sentido estrito, e estreito, da palavra. Vosso exemplo é bem significativo, porque de vós não conheço uma só poesia, nem uma só página de ficção.
Destes, contudo, boa medida de vossa capacidade literária no livrinho precioso em que reunistes as notícias das conferências do Sr. Roberto Garric, em 1933, nesta Academia, sobre a Literatura francesa contemporânea. Não resumistes, apenas, as lições proferidas; comentastes e ampliastes as apreciações emitidas, fizestes, em suma, com seguro critério e pleno conhecimento da matéria, obra de verdadeiro crítico, como reconheceu o mesmo exímio conferencista.
No entanto, ao apresentar essa coleção de crônicas, excluíeis, desde logo, a suposição de qualquer “veleidade literária” e dizíeis que não éreis “um homem de Letras, apenas um homem de jornal”, acrescentando que elas guardavam “a superficialidade e o estilo precipitado dos que, dentro das redações, escrevem com os olhos no relógio das oficinas”.
Noutro ensejo, observei que Félix Pacheco, fora, por exceção quase isolada, jornalista e poeta. Noutros países e noutras épocas, esse exemplo não constituiria exceção. Basta recordar, em França, Balzac e Chateaubriand. Ali mesmo, porém, Rousseau e Diderot proclamavam a profissão de jornalista la plus vile de la littérature e o próprio Balzac variou na sua apreciação – ora dizendo que “a imprensa representa toda a inteligência humana e a própria civilização”, ora afirmando que “se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la”.
Félix Pacheco considerava – e apoiastes o conceito – que “a melhor forja literária é o jornal”, acrescentando: “a gente vai sem querer se polindo na banalidade do noticiário e sentindo de perto as crepitações da vida comum. Quanto repórter não subiu daí à escadaria do sonho?”
Não me parece – devo confessar – que essa baixa à realidade “da vida comum” favoreça a ascensão da “escadaria do sonho”. O jornalista pode, na prática de sua profissão, polir o estilo, desembaraçá-lo de atavios, aprimorá-lo, torná-lo direto, claro, conciso. Entretanto, o Jornalismo é, a meu ver, uma profissão “paraliterária” ou quase-literária, em que o velho preceito – nulla dies sine linea – se observa inexoravelmente e que, por isso mesmo, afasta da Literatura. É o que ocorre, também, com a advocacia. Jornalistas e advogados escrevem, dia a dia, muitas e muitas páginas – que, não sendo de Literatura, bastam para revelar e até para lhes exaurir a aptidão literária. No comentário do fato político, ou do episódio policial, como num arrazoado forense, pode fazer-se – e muitas vezes se faz – incidentemente, certa espécie de literatura, que não conta como Literatura. Como quer que seja, assim o jornalista, ou o advogado, se desafoga das suas tendências literárias. Dizia Camilo Castelo Branco que cada homem contém em si uma porção de inépcia, que há de sair, em prosa ou em verso, como o carnegão de um furúnculo. Jornalistas e advogados extravasam a sua porção de inépcia nas escritas a que a profissão os obriga, sem necessidade de perpetrar literatura. Tornam-se mesmo, de certo modo, desinteressados de fazê-lo, ou inaptos para praticá-la. Só a fazem quando se afastam da advocacia ou da imprensa.
Inversamente – confirmando a procedência da observação – é o que se passa com os médicos. Estes só têm que escrever receituários, recomendações de regime, sem nenhum trabalho de composição. Por isso mesmo, desfecham, inevitavelmente, na Literatura. Por toda parte, no mundo civilizado, cada vez mais, são médicos muitos dos mais ilustres homens de Letras. Aqui mesmo, nesta Academia, vedes quantos são os médicos em pleno exercício da clínica e os bacharéis em Direito arredios da advocacia. Também por isso, faltava-nos um jornalista, que fosse somente jornalista.
Ao mesmo tempo, a Política invade a Literatura: atrai, desencaminha perfeitos e consagrados homens de Letras.
Vejam-se – para citar somente dois, dentre muitos – os exemplos de Aldous Huxley, de Contraponto para O Fim e os Meios, e de Thomas Mann, de A Montanha Mágica para Esta Guerra e Ordem do Dia. Na frase de Valéry, il faut subir la politique.
E não será por isso, para evadir-se da ambiência asfixiante da política destes tempos, que os homens de Letras estão revestindo suas obras das características, que recordei?
Aquele mesmo Julien Benda, num livro que lhe deu renome, denunciara La trahison des clercs na atitude dos homens a quem cabia “defender os valores eternos e desinteressados, como a justiça e a razão” e se empenharam na defesa de interesses práticos. É o caso dos poetas e romancistas que tornaram políticas suas obras.
Contudo, é, em certo sentido, nos dias difíceis e atomentados, que se revelam, mesmo no campo da Literatura, as individualidades marcantes. Roger Martin du Gard, procurando explicar o que considerava a mediocridade de Guy de Maupassant, dizia: il a peut être eu le malheur de vivre dans un temps où la vie n’était pas assez difficile.
Os jornalistas e todos nós, mais ou menos, não estamos tendo esse infortúnio: a vida tem-nos sido assez difficile...
Pior, ainda, para a imprensa. Deturpou-se-lhe a função política. Rui Barbosa, entrosando-a no mecanismo governamental, realçou a relevância de sua missão e assinalou que, somente os costumes políticos excluindo a tendência do regime presidencialista para a irresponsabilidade dos governantes, “a expressão dominante desses costumes é a imprensa”, que, nesse regime, “substitui, como órgão da opinião pública, o mecanismo da responsabilidade ministerial nos países parlamentares”. Controlando-a, imaginaram os governos que formariam, dominariam, a seu sabor, a opinião pública.
Por outro lado, a mentalidade dos homens contemporâneos orientou-se, segundo a justa observação de Walter Lippman, no sentido de supor que se resolve qualquer problema, não pelo reajustamento dos direitos privados atingidos, e sim investindo alguns funcionários na autoridade de lhe impor uma solução. Por tal forma, nada se resolve; aumenta-se a burocracia, hipertrofia-se a ação do Estado.
Não surpreende, pois, se tenha querido resolver do mesmo modo o problema da imprensa, reduzindo-a a condição de serviço administrativo, tornando-a um aparelho burocrático, regulado pelo governo. Nós mesmos tivemos, com na designação abreviada pelas iniciais de sua denominação oficial – o “DIP”. Este monossílabo agudo, parecendo o nome de um animalzinho doméstico de estimação, foi de uma terrível máquina compressora.
Através de longo período de agruras, sob restrições e ameaças – desde as da censura e das prisões até as da falta do papel de impressão – se revelaram, ou afirmaram, na imprensa carioca, alguns de seus melhores jornalistas de todos os tempos, uma plêiade de jornalistas de merecimento, como, suponho, nunca ela tivera na mesma época. Afronto o risco das referências nominais sempre lacunosas, para não calar os nomes de alguns deles, que estarão acudindo ao vosso pensamento, como ao meu próprio. Estamos a lembrar-nos do Sr. José Eduardo de Macedo Soares, panfletário causticante, inexcedível nos epítetos indeléveis e na caracterização de cada momento político; do Sr. Assis Chateaubriand, pesquisador arguto e apaixonado das individualidades, que adaptou o jornalismo brasileiro ao desmedido e variado desenvolvimento do País, dando-lhe imprevista irradiação, tornando-o instrumento de campanhas de interesse coletivo – museus de arte, parques de aeronáutica, centros de saúde infantil; do Sr. Costa Rego, que alia a mais aprimorada expressão literária à mais atilada visão política, no trato de todos os problemas atuais; do Sr. Austregésilo de Athayde, egresso do claustro, com a fé acrescida de prendas artísticas, a lucidez, a cultura e a austeridade do espírito e a doçura do coração, bem formados; do Sr. Orlando Dantas, criador e diretor de um jornal de outra feição, a um tempo cuidadosamente informativo, ciosamente zeloso da sua independência, firme e justo no comentário e na crítica; last not the least, do Sr. Carlos Lacerda, intrépido, violento, agressivo, tantas vezes injusto, realizando com os seus exageros a benemérita reação necessária contra outros exageros muito mais condenáveis. Et j’ en passe, não sem recordar um só dentre os desaparecidos – Horácio Cartier.
A todos eles – como bem assinalastes – honra, em vós, a Academia. Honra-os em vós, por serdes, também, um jornalista destacado deste período culminante de nossa imprensa e porque tendes, mais ou menos, alguma coisa de cada um deles, representando, a média desses temperamentos e dessas tendências divergentes. Honra-os a Academia, com oportunidade, neste momento histórico.
Para caracterizá-lo, basta mencionar dois de seus aspectos. No primeiro se mostra o interesse público pela imprensa, a compreensão da sua necessidade, através do contraste de dois episódios: há sessenta anos, como acentuastes, Joaquim Nabuco não conseguiu levantar 25 contos de réis para fazer um jornal seu; agora, um jornalista moço organiza a sua empresa jornalística com dois milhões de cruzeiros de capital, realizado por três mil e quatrocentos acionistas. Outro aspecto do momento atual caracteriza a boa prática da Democracia – pela plenitude da liberdade de imprensa, que está sendo respeitada como nem sempre o foi em nosso país.
Nela resumis, os jornalistas, vossos ideais mais caros: liberdade de imprensa, ou, em suma, sem especificação – liberdade.
Prezando a ação da imprensa, sabendo o que vale, confiando nos benefícios que produz, por isso mesmo, acima de tudo, lhe prezais a liberdade e considerais essa a condição primordial da eficiência da própria imprensa.
Já em seu tempo, há precisamente um século, Stuart Mill esperava que não fosse mais necessário justificar a liberdade de imprensa como segurança contra governos corruptos e tirânicos. Contudo, se não mais é necessário justificá-la, tantas vezes tem sido subvertida que é sempre necessário protegê-la de ameaças despercebidas, prestigiá-la, valorizá-la. Até porque avultou, em nossos dias, a sua importância. Não é somente condição da eficiência da mesma imprensa; é, para todos os cidadãos, requisito primordial da sua liberdade. Ninguém pode considerar-se livre, se não houver liberdade de imprensa, e, havendo esta liberdade, haverá todas as outras. A liberdade de imprensa acarreta, desencadeia, garante, inevitavelmente, a liberdade política em toda a plenitude.
Num discurso famoso, disse Thiers que a liberdade verdadeira estava no Parlamento; hoje, há de reconhecer-se que está na imprensa. A missão da imprensa não é somente valer-se dessa liberdade, no seu interesse; é, também, zelá-la e defendê-la, no interesse coletivo.
Sempre, ainda convosco, vosso jornal tem-no feito. Criticando, censurando, combatendo, corrigindo – e, também, silenciando. Nunca a arma do silêncio terá sido usada mais expressivamente que pelo Jornal do Commercio em fins de 1893. A esquadra sublevada na baía de Guanabara, bombardeando as duas cidades marginais – e o grande jornal, quotidianamente, noticiando o que se passava no País e no mundo, sem aludir, sequer, à revolução que o avizinhava. Por quê? Porque lhe não era permitido dizer toda a verdade sobre a situação. Surgia daquela atitude uma norma de ética jornalística: ou a verdade integral – ou o silêncio. Não a esquecestes e tendes sabido observá-la.
Missões, diplomáticas ou culturais, vos têm levado ao estrangeiro e de lá vos têm vindo condecorações e honrarias; associações literárias, ou científicas, vos têm investido em posições destacadas. Em todas as oportunidades, tendes dissertado sobre a missão da imprensa, exaltando o valor da sua liberdade irrestrita. Avultais a prática quotidiana do jornalista com a pregação do doutrinador.
Em conferência na Universidade de Montevidéu, recordastes que a liberdade de imprensa, consagrada na Declaração de direitos de 1789, reconhecida, desde então, em todas as constituições políticas – tem sido, na prática, freqüentemente violada. Encarecestes, pois, a necessidade de formar um órgão internacional, independente de qualquer subordinação política, ou governamental, que tutelasse a liberdade de imprensa no mundo. Sugeristes à Comissão Jurídica interamericana a recomendação da defesa internacional da liberdade de imprensa, por um órgão adequado.
Mais recentemente, em parecer sobre consulta da UNESCO, relativa ao projeto de criação do Instituto Internacional de Imprensa e de Informação, emanado de conferência especial promovida pelas Nações Unidas, acentuastes a deficiência do Instituto projetado, que, visando satisfatoriamente o aperfeiçoamento técnico da imprensa, a elevação do seu nível intelectual, a segurança da sua autoridade moral, se desinteressava do que, como dissestes, constituía o aspecto principal do problema, isto é, a liberdade de imprensa e o direito à informação, consideradas, por vós, “dois postulados absolutos para a garantia da paz”. Indicastes as modificações necessárias para atingir esses objetivos.
Essas aspirações vossas estão a caminho de realizar-se. A quase platônica “declaração americana dos direitos e deveres do homem”, que a conferência interamericana de Bogotá aprovou; a talvez ainda mais platônica “declaração universal dos direitos do homem”, que a Assembléia das Nações Unidas proclamou, hão de transformar-se numa convenção, plenamente obrigatória. Uma convenção que autorizará os cidadãos espoliados em sua liberdade a levar ao tribunal internacional o Estado que os oprime, e lhes proporcionará as garantias necessárias. É nesse sentido a evolução lenta e contínua do Direito Internacional. Estou certo de que, talvez demoradamente, atingirá ao altiplano.
Entre os direitos constantes das duas declarações e que hão de ser assim garantidos, está, em primeira linha, o “direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão do pensamento por qualquer meio”.
São as mesmas palavras nas duas declarações, com a só diferença de que, na de Paris, em vez de “difusão do pensamento”, se diz – “disseminação de idéias”. Falta, porém, em ambas, outro direito, que a esse corresponde, e é como a sua forma passiva – o de livre informação, a de haurir livremente todas as informações desejadas. Dois outros preciosos meios de informação generalizaram-se: o rádio e o cinema. E é certo que, como acentuou Harold Laski, todos esses meios não estão ao alcance de qualquer um que queira aproveitá-los; cada um tornou-se dependente do Big Business, com o objetivo, não de divulgar a verdade, mas de auferir lucros, transmitindo a verdade somente na proporção em que o permite a preocupação do ganho.
Por conseqüência, o problema da liberdade de imprensa não é hoje somente um problema de ordem legal, ou política; é, também, e, principalmente, um problema de ordem moral; só a idoneidade moral dos que a exercem lhe garante a aplicação a bem da verdade.
A comissão da UNESCO que elaborou um relatório sobre as necessidades técnicas da imprensa observou que nenhuma outra profissão exige cultura mais variada e espírito mais aberto, aliados à faculdade de aplicar os conhecimentos adquiridos às informações, quotidianas. Reconhecidas essas exigências, multiplicam-se, por toda parte, escolas de preparação profissional de jornalistas. Mas, tinha razão o húngaro Pulitzer, diretor de um dos maiores jornais americanos, considerando a Jornalismo a mais exigente de todas as profissões – a que reclama conhecimentos mais extensos e aprofundados e base moral mais sólida.
Nem todas as escalas profissionais estarão habilitadas a essa dupla formação. Para tanto, vale mais a prática imediata da própria imprensa, da imprensa dominada pelo sentido exato da sua missão. Foi essa a vossa escola.
Não vos ficou despercebida a seqüência de historiadores na Cadeira que é agora vossa.
Por ela, sob patrocínio de Varnhagen, passaram Oliveira Lima, Alberto de Faria, Rocha Pombo, Rodolfo Garcia. Mesmo os que versaram outros gêneros literários, como Rocha Pombo, ou marcaram sua vida pública com outras preocupações preponderantes, como Alberto de Faria – mesmo esses, aqui vieram recomendados por suas abras históricas. Nenhum deles foi verdadeiro jornalista. Contrariando certa tradição acadêmica, de significado primoroso – um historiador não sucede a outro historiador, nem a um poeta outro poeta – tem persistido a Academia em reconduzir, nessa Cadeira, um historiador após outro historiador. Convosco se quebra essa norma e se restabelece a tradição.
Na Academia francesa, dizia Mauriac, ao receber Paul Claudel, que os vivos, por ela desdenhados, forçam-lhe as portas depois de mortos e penetram sob a cúpula, com aqueles de seus filhos espirituais, por fim acolhidos. Dessa forma, Mallarmé acompanhava Valéry; Rimbaud – cujo nome se pronunciava pela primeira vez, naquele recinto – seguia Claudel.
Não dos de que houvesse desdenhado, ao contrário, dos que a não quiseram na primeira hora, acolhe nossa Academia os filhos espirituais: com Rodolfo Garcia, seu maior discípulo, um de seus maiores amigos, ingressou Capistrano de Abreu; convosco, pode dizer-se que recebemos José Carlos Rodrigues, que se não foi vosso pai espiritual, terá sido vosso avô... Ele foi jornalista exímio e historiador, dedicado à História que se não socorre da imprensa – a História Sagrada.
Ainda por motivo dessa genealogia, estareis bem na Cadeira para que fostes eleito. Não, porém, porque o jornalista seja sempre, mais ou menos, historiador. Considerais o jornal “a fonte viva da história”. A meu ver, ele apenas presta à História uma contribuição, que se pode tornar valiosa, mas há de ser aceita com reserva. Em certo sentido, a imprensa e a História parecem-me quase antagônicas, de sentido e objetivos diversos. O jornalista é, antes, um protagonista, um personagem da História, participando dos episódios, influindo neles.
Recordai o encanto da leitura de jornais velhos. O maior prazer, que proporciona, resulta de verificar como falharam os prognósticos, que eram, afinal, os prognósticos de todos os envolvidos no tumulto dos acontecimentos quotidianos! Como erram as interpretações dos fatos ocorrentes, das intenções dos governos, das conseqüências e da repercussão dos episódios quotidianos! Conta-se que a tomada da Bastilha foi, em julho de 1789, narrada pelos jornais como um simples acontecimento policial. Ninguém percebia o que era, nem previa o que resultaria dele.
É incrível como, ainda de boa fé, divergem as narrativas dos mesmos fatos pelos contemporâneos, pelas testemunhas presenciais, pelos jornais da época. A História suprime essas divergências; concilia-se, dá feição nova aos fatos desencontrados. Consegue-o, em grande parte, por obra da imaginação, ajustando, coordenando, explicando-os, nas grandes linhas da evolução dos povos. Essa é a fase suprema dos estudos de história – da “história considerada como ciência” – a que ainda não chegamos. Estamos, como bem acentuastes, na fase preliminar, de pesquisa e coleta de documentos, de investigação dos fatos, em que avulta a contribuição da imprensa.
Vosso predecessor, Rodolfo Garcia, era inexcedível na arte de aproveitar essa e todas as demais achegas para os estudos da História pátria. Ele passou o seu tempo a armar os andaimes da grande construção ainda não começada. Terá sido jornalista, mas parecia-me o contrário de um jornalista.
Como quer que fosse, soubestes traçar-lhe, com felicidade, o perfil. Quem o visse – baixo, corado, cabelos e bigodes brancos e curtos, óculos, fumando charuto, quase indiferente ao que o rodeava; quem soubesse de sua obra, em grande parte secundária ou complementar, anotando, corrigindo, completando abras alheias; quem só lhe conhecesse a falta completa de vaidade de qualquer espécie – não poderia atribuir-lhe a personalidade forte, nobre e altiva, que era a sua.
Austero, discreto, comedido, cortês, solícito, serviçal de todos os que lhe invocassem os ensinamentos, era, ao mesmo tempo, malicioso, irônico, até implacável, no julgamento e na condenação dos ignorantes e dos pretensiosos – principalmente dos pretensiosos; veemente e temível no revide aos ataques sofridos.
Falastes na “Academia garciana” – denominação que a Rodolfo Garcia não agradaria. Os que freqüentamos aquela “Academia” sem discursos, nem regimento, havemos de lembrar-lhe sempre o convívio delicioso. Também não era simples reunião de conversa banal, de comentário frívolo dos episódios de cada dia. Nem um pretexto para madraçaria burocrática. Nem um círculo fechado. Era, em certo sentido, um centro de troca de conhecimentos e de impressões, de que podiam participar todos os que se aproximavam com preocupações afins.
Rodolfo Garcia, sentado à mesa de diretor da Biblioteca Nacional, atulhada de livros e papéis, fumando cachimbo, estava, quase sempre, engolfado na leitura de algum velho alfarrábio, que procurava decifrar com o auxilio de uma lente poderosa. No sofá e nas poltronas fronteiras, quatro a seis pessoas – algumas das quais muito variáveis. Entre elas, Afrânio Peixoto, Tasso Fragoso, Primitivo Moacir, os Srs. Pedro Calmon, Batista Pereira, João Baptista de Magalhães, Hélio Vianna, Vanderley de Pinho, Leão, Teixeira, Carlos Pontes, Honório Rodrigues, Leonídio Ribeiro, quantos e quantos outros! Quem vinha fazer pesquisas em livros ou papéis, da Biblioteca, ou pedir a Rodolfo Garcia esclarecimento ou informe, ou orientação, detinha-se na sala, por momentos, e geralmente entrava na conversa. Rodolfo Garcia não interrompia sua tarefa administrativa – atendendo a funcionários, despachando o expediente, tomando providências sobre os serviços, pesquisando documentos para os “Anais”. Contudo, sempre mais ou menos atento à conversa dos outros, ou diretamente interpelado por algum destes, intervinha, com freqüência, nas discussões travadas, opinava, contestava ou apoiava, ria com o seu riso grosso e breve, e logo voltava ao trabalho e ao cachimbo. Simples e sincero, orgulhoso sem ostentação, devotado sem expansões estrepitosas de afeto, Rodolfo Garcia era um homem encantador, um desses homens que os outros somente aos poucos vão conhecendo e admiram e amam quanto mais os conhecem.
Seus estudos históricos estendiam-se à Etnologia, à Filologia, à Geografia, sabendo a influência da raça, da língua e da situação territorial nos fatos da vida de cada povo. Restringiam-se, preferentemente, ao período colonial. Dessa época, ele sabia tudo, com todas as minúcias, respondendo, de pronto, às perguntas sobre qualquer questão controvertida. De que se não desinteressava das épocas anteriores, fez prova cabal nas anotações à obra de Varnhagen.
Em relação às Efemérides de Rio Branco, que era outro meticuloso investigador de minúcias, é muito significativo o que ocorreu. A obra ficara incompleta, com a falha de 50 dias. Anteriormente, uma comissão ilustre procurara preencher a lacuna, fazendo trabalho original. Rodolfo Garcia, preparando a reedição do livro, adotou outra orientação, mais trabalhosa. Preferiu extrair, das próprias obras de Rio Branco, trechos correspondentes às datas omitidas. Assim, como disse, pôde integrar “o livro de Rio Branco com elementos que de pleno direito lhe pertenciam”. Ao mesmo tempo, deu um exemplo singularíssimo do seu escrúpulo, da sua humildade, catando na obra dispersa de Rio Branco os trechos necessários para completar as Efemérides, em vez de incrustar nelas os que ele próprio, com maior facilidade, poderia compor.
Em um só tópico, se me não engano, Garcia retificou Rio Branco: em relação à morte de Andrés Artiga, filho do intrépido José Artigas. Ao fazê-lo, mencionou, em primeiro lugar, o documento histórico que apoiava a informação acolhida nas Efemérides; em seguida, citou o que retificava essa informação e referiu como o obtivera. Essa era a sua maneira de emendar os erros dos outros – respeitosamente, sem alarde, escusando e justificando o deslize cometido. Não tinha prazer em emendar; tinha-o em investigar, em achar a explicação de sua controvérsia, em esclarecer um ponto obscuro.
Era o obreiro infatigável, viciado do trabalho, que se só sentia bem trabalhando. Certa vez, no curso de sua última enfermidade, para encorajá-lo, lhe dizia eu que estava aparentemente muito bem; logo me contestou: “Não, meu caro; eu só estarei bem quando puder ler e escrever.” Não se consolava de que seus olhos houvessem cansado de decifrar códices. A triste verdade era que haviam cansado para sempre.
Em novembro do ano passado, estando na capital de um grande Estado do norte, lia eu, com o interesse inveterado, os principais jornais da terra. Certa noite findava a leitura de um deles, quando me caiu o olhar sobre pequena notícia da última sessão do Instituto dos Advogados desta cidade. Dela constava que um advogado propusera o costumado voto de pesar, por motivo do falecimento – sabeis de quem? de Rodolfo Garcia. Nada mais. Somente assim, incidentemente, indiretamente, vim a saber daquela morte. Os jornais locais não lhe deram maior destaque; ignorariam o morto e sua obra; não aquilatariam a imensa perda sofrida por todos nós. Tive dobrada vontade de chorar.
Abrira-se em nossa Companhia um grande claro. Viestes preenchê-lo, Sr. Elmano Cardim. Homem da mesma alta estirpe intelectual e moral de Rodolfo Garcia, convosco há de perdurar, nesta Casa, a memória dele. Satisfeitas as formalidades do ritual, estais para sempre consagrado seu sucessor nos quadros da Academia. Falta-me, contudo, dizer que a Academia vos recebe jubilosa. Dizendo-o, não cumpro uma formalidade; digo o consolo e as esperanças que a vossa presença nos traz.