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Se Deus quiser

 

Uma leitora escreveu para o jornal reclamando que “tem uma turma implicando com a religiosidade de Bolsonaro”. Ela argumenta: “O Estado é laico, mas o ser humano não é ateu”. Concordo, mas o capitão não precisa exagerar. “Não tomeis o nome do Senhor em vão”, recomenda um conhecido versículo bíblico que condena esse uso abusivo.

Apenas um exemplo: na sua visita ao Congresso esta semana, ele chegou a citar Deus cinco vezes num discurso de dois minutos. Uma das citações até que fazia sentido, já que era o agradecimento por ter escapado do atentado. As outras eram dispensáveis, digamos, em vão.

Mas o que eu, um ex-coroinha que ia ser padre, implico mesmo é com a mania de repassar para Deus a responsabilidade do governo, de tal maneira que a culpa pelo que não der certo não será sua, mas d’Ele. O próximo presidente gosta de afirmar que “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos”. Quer dizer, se falhar é porque não foi devidamente capacitado por Quem deveria fazê-lo. Um álibi divino para o fracasso, uma espécie de resignação preguiçosa: “o problema não é meu”.

Além de ser injusta, é uma sobrecarga para Deus, que anda muito ocupado, não conseguindo atender nem aos pedidos mais urgentes e dramáticos, como o do menino Thiago Mendonça, de 14 anos, atingido por uma bala perdida e que implorou: “Mamãe, levei um tiro. Eu não quero morrer. Fale com Deus”. Sem sucesso.

Thiago lia um livro numa pracinha na Cidade de Deus (o nome é uma ironia!), quando foi baleado. Levado imediatamente para o Lourenço Jorge pela mãe, sofreu três cirurgias, no baço, no fígado e nos rins. Ela contou: “Os médicos correram para salvá-lo. Ele só agradecia, pedia para Deus abençoar a todos”.

Três outros adolescentes, além de Thiago, foram vítimas fatais de balas perdidas em quatro dias no Rio de Janeiro, sem que Deus pudesse ou tivesse tempo de fazer alguma coisa por eles.

De qualquer maneira, é preferível ver Bolsonaro de olhos fechados, contrito, num templo ou até de mãos dadas com o Magno Malta rezando, ou melhor, orando, do que ensinando a uma criança de colo o seu gesto típico, que ele usou inclusive quando estava no hospital: os dois dedos indicadores simulando um tiro de fuzil.

Bolsonaro desembarcou em Brasília tentando mostrar que é outro. Sua visita cordial a Dias Toffolli, a Constituição como “norte”, entre outros gestos conciliadores, fazem parte dessa estratégia de quem estaria abandonando a belicosidade e os maus modos que caracterizaram o comportamento do candidato.

Queira Deus.

O Globo, 09/11/2018