A edição da poesia escolhida de Vera Duarte Pina não podia ser mais tempestiva. Primeiro porque recolhe, na forma de arquipélago, as partes dispersas das ilhas de Cabo Verde, apontando para um sentido de unidade, um rosto, com o desenho de suas próprias mãos.
Em segundo lugar, porque uma antologia pessoal produz nova leitura, mais que um déjà-vu, causada pela vizinhança dos poemas – que agora dialogam face a face, e produzem uma terceira impressão –, pelo balanço entre os conjuntos ausentes e reconvocados.
A reinvenção do mar traduz variados níveis de leitura, a poética luso-brasileira e cabo-verdiana, formando um sistema, ao mesmo tempo, expandido e concentrado, único e plural. Contudo, é a navegação de cabotagem que importa, nas águas internas de seu mediterrâneo, lírico e lúcido, feito de remoinhos e águas calmosas. Há muita vida nessas páginas, sob uma perfeita economia de meios, que não perde a voz: a morabeza das palavras, esse tratado de armistício e cultura da paz, que não esconde, muito embora, as armas da denúncia:
“Em África nasce uma rosa/ Uma rosa entre cadáveres/ E dela brota um sol de sangue. / Rosa única de dor e revolta
E dela queda o sol de sangue”.
Uma geografia como ponto de partida, não de chegada, rosa áspera, cujo Sol deita sangue, em sua vertente misteriosa, espelho de povos que aderem ao novo estado de coisas. Sinto algo de Corsino Fortes, meu saudoso amigo, as lições de Maiakovski e Nazim Hikmet, acerca da generosa disposição anímica, onde o animal político não diminui o animal poético.
Não podia ser diferente, pois sua vocação vem de longe, ao sul de tudo, como lemos em poema manifesto, em que Vera deixa as impressões digitais sobre a página onde apresenta uma filosofia da composição:
“Não morri jovem, nem poeta
Mas não quero que o meu sorriso se esvaia/ E o meu coração deixe de bater./ O fascínio vem-me de longe,
De tão longe que lhe perdi o começo”.
Perder o começo, pois esse mar é feito de abismos de sentido, distintas camadas de significação. Como disse Jorge de Lima, “há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Eis a metáfora transversal de seu país, que também divide este livro, em que o leitor respira os ventos que varrem as ilhas, num copo de mar, onde flutuam versos afortunados.
Mas é também sabido que nenhuma ilha é apenas, e em si mesmo, uma ilha, um descontínuo fechado, perdida num tempo infinito que não passa. Toda ilha é latência, espera e destino.
Os poemas de Vera encarnam uma profunda solidariedade entre os fenômenos, um descortino de analogias. Uma parte que vai de si para o mundo, e me refiro a uma erótica política, espécie de corpo métrico voltado para as dores do mundo e aos tempos que se cruzam justamente entre micro e macrocosmos. O abraço que cria e protege o universo, diante da metáfora, humana e real, que uma vez mais aponta para a África, cujo futuro não cessa de crescer, olhos abertos para o novo, Pasárgada latente e necessária. Aqui a grandeza de Vera, uma das vozes mais límpidas e claras da poesia em língua portuguesa:
“Neste momento em que te amo/ Na Namíbia e no Zimbábue,/ Violam-se a cor dos feitos nas capitais dos impérios.
Neste momento em que te amo/ Eu e tu, sentados na ilha, no banco da praça, olhando o mar,/ Saberemos ser amor e no nosso abraço aquecer o mundo”.