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Só Freud explica

 

Nestes tempos de incongruências e contradições, algumas perguntas são inevitáveis para tentar explicar certos comportamentos coletivos na hora de decidir. O que nos leva a esta e não àquela preferência? O que define nossas escolhas, seja de um produto para consumo, uma pessoa para amar ou um candidato à presidência da República? O que afinal nos move — a razão ou a emoção, a cabeça ou o coração? Alguém, no século XVII, já deu uma resposta que ainda hoje não perdeu a validade e já é até lugar-comum: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, decretou Blaise Pascal, o prodigioso matemático, físico, inventor, filósofo e teólogo católico francês.

Um dos candidatos à presidência disse agora que “o Brasil precisa de um psicanalista”. É verdade, porém mais para entendê-lo do que para governá-lo. Não adianta buscar na sociologia explicação para condutas do eleitor que contrariam a lógica e a racionalidade, como o apoio incondicional e a adesão a ideias absurdas, anacrônicas, preconceituosas, desviantes, obscurantistas. Nesses casos, é melhor recorrer à psicanálise, consultar Freud, especialista em explorar nossas zonas de sombra, aquelas regiões do inconsciente onde vicejam desejos e fantasias às vezes inconfessáveis e sempre decisivas.

Como se trata de uma disputa para ver quem é mais confiável, mais bem preparado, enfim, melhor, nos debates na TV a que pude assistir (Jair Bolsonaro, no “Roda viva”, Ciro Gomes e Geraldo Alckmin, na GloboNews), os presidenciáveis apresentaram estratégias de convencimento e sedução em que deram tanta atenção ao conteúdo quanto à forma — o gestual, o olhar, a entonação de voz, o riso irônico. Sabe-se que alguns, se não todos, preparam-se como se fossem candidatos a uma novela e não à Presidência. Exercitam-se por meio de ensaios em que assessores desempenham o papel de jornalistas, simulando perguntas sobre assuntos incômodos que inevitavelmente surgem no confronto diante das câmeras.

O recurso é citar com convicção muitos números e dados, porque na hora causam impressão e, mesmo não sendo corretos, só vão ser desmentidos ou corrigidos pelos jornais no dia seguinte, quando já produziram efeito junto aos seguidores. Melhor ainda se forem citações da História, porque demonstram intimidade, conhecimento, erudição. Vale inventar, deturpar, mentir. Como fez Bolsonaro ao negar enfaticamente que o Brasil tenha uma dívida histórica com a população negra. “O português nem pisava na África e eram os próprios negros que entregavam os escravos”, afirmou, sem hesitar.

Quando os historiadores reagiram com indignação a essa fake news, os fiéis adeptos já comemoravam nas redes sociais o desempenho do “mito”. Só Freud mesmo para explicar.

O Globo, 04/08/2018