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Preparado para o combate, mas com dúvidas

 

Estou vestindo uma estranha farda verde, cheia de zíperes, feita de tecido grosso. Minhas mãos estão com luvas, de modo a evitar ferimentos. Carrego comigo uma espécie de lança quase da minha altura: sua extremidade de metal possui um tridente de um lado e uma ponta afiada do outro.

E diante dos meus olhos, aquilo que será atacado no próximo minuto: meu jardim.

Com o objeto em minha mão, começo a arrancar a erva daninha que se misturou com a grama. Faço isso durante um bom tempo, sabendo que a planta retirada do solo irá morrer antes que se passem dois dias.

De repente, me pergunto: estou agindo certo?

Aquilo que chamo de "erva daninha" é na verdade uma tentativa de sobrevivência de determinada espécie, que demorou milhões de anos para ser criada e desenvolvida pela natureza. A flor foi fertilizada a custa de incontáveis insetos, transformou-se em semente, o vento espalhou-a por todos os campos ao redor, e assim - porque não está plantada em apenas um ponto, mas em muitos lugares - suas chances de chegar até a próxima primavera são muito maiores. Se estivesse concentrada em apenas um lugar, estaria sujeita aos animais herbívoros, uma inundação, um incêndio, ou uma seca.

Mas todo este esforço de sobrevivência esbarra agora com a ponta de uma lança, que a arranca sem qualquer piedade do solo.

Por que faço isso?

Alguém criou o jardim. Não sei quem foi, porque quando comprei a casa ele já estava ali, em harmonia com as montanhas e com as árvores ao seu redor. Mas o criador deve ter pensado longamente no que fazer, plantado com muito cuidado e planejamento (existe uma aleia de arbustos que esconde a casa onde guardamos lenha), e cuidado dele através de incontáveis invernos e primaveras. Quando me entregou o velho moinho - onde passo alguns meses por ano - o gramado estava impecável. Agora cabe a mim dar continuidade ao seu trabalho, embora a questão filosófica permaneça: devo respeitar o trabalho do criador, do jardineiro, ou devo aceitar o instinto de sobrevivência que a natureza dotou esta planta, hoje chamada de "erva daninha"?

Continuo arrancando as plantas indesejáveis, e as colocando em uma pilha que em breve será queimada. Talvez eu esteja refletindo demais sobre temas que nada tem a ver com reflexões, mas com ações. Entretanto, cada gesto do ser humano é sagrado e cheio de consequências, e isso me força a pensar mais sobre o que estou fazendo.

Por um lado, aquelas plantas têm o direito de se espalhar em qualquer direção. Por outro lado, se eu não as destruir agora, elas terminarão por sufocar a grama. No Novo Testamento, Jesus fala de arrancar o joio, de modo a não se misturar com o trigo.

Mas - com ou sem o apoio da Bíblia - estou diante do problema concreto que a humanidade enfrenta sempre: até que ponto é possível interferir na natureza? Esta interferência é sempre negativa, ou pode ser positiva às vezes?

Deixo de lado a arma - também conhecida como enxada. Cada golpe significa o final de uma vida, a não-existência de uma flor que iria desabrochar na primavera, a arrogância do ser humano que quer moldar a paisagem ao seu redor. Preciso refletir mais, porque estou neste momento exercendo um poder de vida e de morte. A grama parece dizer: "proteja-me, ela irá me destruir". A erva também fala comigo: "eu viajei de tão longe para chegar ao seu jardim - por que você quer me matar?".

No final, o que vem ao meu socorro é o texto indiano Bhagavad Gita. Lembro-me da resposta de Khrisna ao guerreiro Arjuna, quando este mostra-se desalentado antes de uma batalha decisiva, atira suas armas no chão, e diz que não é justo participar de um combate que terminará matando seu irmão. Khrisna responde mais ou menos o seguinte: "Você acha que pode matar alguém? Sua mão é Minha mão, e tudo que você está fazendo já estava escrito que seria feito. Ninguém mata, e ninguém morre".

Animado por esta súbita lembrança, empunho de novo a lança, ataco as ervas que não foram convidadas a crescer em meu jardim, e fico com a única lição desta manhã: quando algo indesejável crescer na minha alma, peço a Deus que me dê a mesma coragem para arrancá-lo sem qualquer piedade.

Da luta sem violência

Vale a pena ler, de vez em quando, novos textos de Morihei Ueshiba (1883 - 1969),criador da arte marcial conhecida como Aikido. Coletados por seus discípulos, eles mostram que o confronto é parte da natureza humana, mas pode ser utilizado para reconciliar-se com seu próximo e com o mundo. A seguir, destes ensinamentos (condensados e adaptados).

Com os mais sábios

Olhe o mundo ao seu redor, veja o trabalho que foi feito, escute o que os mais velhos procuram ensinar, e use tudo isso como se fosse sua herança. Porque a verdade está diante dos seus olhos, e qualquer coisa - um homem, um rio, uma planta - pode ser seu mestre. Veja como a água flui livremente através das rochas, e procure ser como ela. A cada manhã, vista-se com as roupas do céu e da terra, lave-se com a energia do amor, e deixe-se abrigar pelo coração da Mãe Natureza.

A voz interior vem do exterior

Seu coração guarda muitas sementes férteis, que estão esperando apenas a luz para que possam desabrochar. Permita que esta luz entre em sua alma: deixe-se guiar pelo fluir das coisas a sua volta, procure seguir a qualidade de alguns vegetais. Seja sempre verde como o pinheiro, flexível como o bambu, belo como o lótus, e elegante como o lírio.

Seja você, não procure ser o seu próximo.

Acalme seu espírito, e busque de novo a fonte de onde tudo nasce, removendo qualquer vestígio de maldade ou egoísmo. Se você ficar muito preocupado em descobrir o que há de bom ou de mau em seu próximo, irá esquecer de sua própria alma, e será exaurido e derrotado pela energia que gastou ao julgar os outros. A vida é uma manifestação de amor, e um guerreiro deve estar mais concentrado em promover a paz do que em provocar o combate.

Talentos e virtudes

Aqueles que buscam melhorar a si mesmos não devem estar presos à teorias ou palavras, mas procurar agir de maneira impecável, utilizando quatro virtudes que devem ser conservadas: coragem, sabedoria, amor e amizade. Existem vários caminhos para isso, assim como existem várias trilhas para se chegar ao topo de uma montanha - mas este topo chama-se amor, e um verdadeiro guerreiro deve entender esta palavra cada vez que estiver diante de uma decisão. Para isso, treine bastante, mas atue baseado em sua intuição, porque o amor sempre nos permite escolher o melhor caminho.

O caminho do guerreiro

A espada sagrada, afiada e brilhante, sempre corta o mal pela raiz. Se essa espada fosse feita de ferro, estaria cheia de impurezas, e se quebraria ao primeiro golpe: entretanto, ela foi trabalhada e martelada pela mão do Ferreiro, transformou-se em aço, e isso é também uma qualidade do homem ou da mulher que a empunham. Cada golpe recebido no passado foi também uma maneira de aprender alguma lição, e evitar armadilhas no futuro.

O verdadeiro caminho está baseado nas quatro virtudes, e querer limitá-lo à sua manifestação física, é querer deixá-lo mais pobre - porque o corpo tem seus limites. A alma, entretanto, é tão grande como o universo, e pode entender tudo que o amor nos ensina.

O verdadeiro guerreiro está sempre armado com três coisas: a espada radiante da pacificação, o espelho cristalino da sabedoria e amizade, e a joia preciosa da luz Divina. E esta luz Divina não está no céu nem na terra, está dentro de cada um.

Diário do Nordeste , 21/07/2018