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Crime e castigo

 

Com quem você acha que o brasileiro realmente se identifica — com aqueles torcedores machistas e cafajestes que assediaram e humilharam uma jovem russa que, sem entender português, foi levada a repetir termos chulos e ofensivos, como se tratasse de uma inocente brincadeira, ou com os que, em número muito maior, se indignaram com o revoltante comportamento?

O vergonhoso episódio abre um debate sobre identidade nacional. Qual seria o caráter do brasileiro? Não é fácil estabelecer nosso traço característico. Importantes ensaístas e ficcionistas já tentaram em geniais sínteses: o historiador Sérgio Buarque de Holanda criou o “Homem cordial”, o romancista Mário de Andrade inventou “Macunaíma, o herói sem caráter”, Nelson Rodrigues descobriu o “complexo de vira-lata”, como marca de um povo que vive se depreciando.

No caso aqui tratado, até que ponto se pode generalizar a conduta de um pequeno grupo? A tentativa de atribuir o desprezível comportamento na Copa da Rússia a causas históricas e culturais está sendo usada pelos acusados como atenuante e justificativa. Se eles representam a nossa sociedade, então a culpa seria de uma cultura da qual somos herdeiros. Portanto, em situação idêntica, agiríamos do mesmo modo: “o brasileiro no estrangeiro é assim, basta beber um pouco”. Na verdade, mais do que uma simples desculpa, é também um álibi.

O advogado de um dos envolvidos, o tenente da PM, por exemplo, alegou que o ato praticado por seu cliente “não condiz com a personalidade dele”. Condiz, sim; não condiz provavelmente é com a personalidade dos demais tenentes da PM. O mesmo se pode dizer dos outros, como o ex-secretário de Saúde e de Educação do Piauí que pediu desculpas “a todas as mulheres” e apresentou a seguinte alegação: “todos nós somos seres humanos e erramos”. É a gasta desculpa de que “errar é humano”, como se acertar não fosse.

Os brasileiros que proporcionaram aquele vexaminoso espetáculo na Rússia estão procurando passar a imagem de que são o protótipo de pessoas normais, “chefes de família”, como alegou um deles. A questão é que normal é quem segue a norma, quando eles preferiram o desvio.

O melhor antídoto contra os que seguem esse caminho ainda é a educação, mas, na falta desta, não há outro remédio que não seja a punição. É o que decidiu o Ministério Público Federal, ao considerar que não foi uma “brincadeira” o que eles cometeram, mas um “crime de injúria contra a mulher".

O Globo, 27/06/2018